Morreu o pintor Télémaque (1937-2022), fundador da figuração narrativa

Nascido no Haiti e radicado em Paris desde o início dos anos 60, o pintor e escultor morreu esta quinta-feira aos 85 anos.

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Télémaque em 2015, na exposição Picasso Mania, no Grand Palais, em Paris Bertrand Rindoff Petroff/Getty Images

O pintor Hervé Télémaque, pioneiro da figuração narrativa, morreu esta quinta-feira em Paris na sequência de uma embolia pulmonar, noticiou o diário francês Le Figaro. Nascido em Port-au-Prince, capital do Haiti, em 1937, o artista vivia em França desde 1961, após ter passado alguns anos da sua juventude em Nova Iorque. Tinha feito 85 anos no passado dia 5.

Considerado um dos fundadores da figuração narrativa, que se desenvolveu no início da década de 60 em Paris, o artista vinha assistindo nos últimos anos a um crescente reconhecimento da sua obra, designadamente a partir da grande retrospectiva que lhe dedicou em 2015 o Centre Pompidou.

Télémaque deixou o Haiti em 1957, quando François Duvalier chegou ao poder, e instalou-se em Nova Iorque, inscrevendo-se na Art Student’s League, onde foi aluno do pintor Julian E. Levi, que reconheceu o seu talento e o incentivou, sem sucesso, a naturalizar-se americano. Formado no expressionismo abstracto, e depois fascinado pelo surrealismo, o jovem artista haitiano foi particularmente influenciado por Arshile Gorky.

Numa entrevista publicada pelo Centre Pompidou no contexto da retrospectiva da sua obra, Télémaque explica que conhecia bem e admirava a pintura de De Kooning, Pollock e Rothko, mas que chegara à conclusão de que o expressionismo abstracto não era o seu caminho. “Essa escola propriamente nova-iorquina parecia-me insuficiente para contar de onde vinha e quem eu era”. E era um jovem artista negro com raízes no Haiti a viver num país onde, nesses finais dos anos 50, a segregação institucionalizada era ainda uma realidade.

Farto do racismo da sociedade americana, mas levando consigo influências do expressionismo abstracto e, sobretudo, da pop art, o pintor instalou-se em 1961 na capital francesa, onde iria permanecer até à sua morte. Em Paris, conviveu com André Breton e com os artistas ligados ao surrealismo, embora nunca tenha aderido formalmente ao movimento, e a partir de 1962 lançou, com pintores como o francês Bernard Rancillac, o alemão Peter Klasen, o espanhol Eduardo Arroyo, ou o sueco-brasileiro Öyvind Fahlström, a corrente da figuração narrativa, que teve a sua primeira manifestação colectiva de relevo na exposição Mythologies Quotidiennes (Roland Barthes publicara as suas Mythologies em 1957), organizada pelo crítico Gérald Gassiot-Talabot, primeiro teórico do movimento.

Identidade, racismo e sexualidade

Numa espécie de exorcismo da experiência nova-iorquina, Télémaque pintou, pouco depois de chegar a Paris, uma obra que começara a idealizar ainda na América: No Title (The Ugly American), um óleo sobre tela constituído por dois painéis justapostos – totalizando 2,5 metros de largura por quase dois metros de altura –, onde o artista mistura personagens reais do presente e do passado, como o líder da revolução cubana, Fidel Castro, ou o haitiano Toussaint Louverture, que combateu a escravatura e o colonialismo francês no final do século XVIII, com palavras retiradas da peça Rei Ubu, de Alfred Jarry, e figuras criadas pela sua imaginação.

Quando regressou a Nova Iorque para assistir à reabertura do MoMa, em Outubro de 2019, o artista, então com 81 anos, teve o prazer de ver ali exposto, na sala reservada à pop art – movimento ao qual também ficou sempre associado – precisamente o seu No Title (The Ugly American), que o museu adquirira no ano anterior.

Numa entrevista dada na ocasião ao site Art News, Télémaque defende que o que mais nitidamente o separa dos principais artistas americanos da sua geração é o pouco interesse destes pela política, que nem a guerra do Vietname teria conseguido acordar. Já na Paris que foi encontrar nos anos 60, havia uma “riqueza ideológica e cultural vibrante”, argumenta. “Tínhamos ao mesmo tempo o surrealismo a acabar, o situacionismo e o comunismo”. E pergunta: “Como seria possível pintar sem levar em conta toda essa bagagem intelectual?”

Mas a sua obra, que passou por períodos muito diversos – das assemblages de objectos do quotidiano (nas quais ocupa lugar de destaque a bengala branca dos cegos) no final dos anos 60, ou as posteriores colagens ou desenhos a carvão –, sempre misturou a crítica social e política, e em particular a denúncia do racismo e do colonialismo, com o imaginário sexual, o registo do quotidiano, as referências autobiográficas, e ainda um persistente interesse pela relação entre as imagens e as palavras.

“Servi-me da minha autobiografia de mestiço e de haitiano para estruturar uma dupla linguagem, fundada na política e no social, em torno da questão da identidade e do racismo, mas também na sexualidade, que é muito importante para um ancião psicanalisado como eu” [fez psicanálise quando viveu em Nova Iorque]”, resumiu Télémaque em 2015, concluindo: “É tudo isso, creio eu, que, melhor ou pior, faz a minha originalidade”.

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