Enquanto houver salmonetes, haverá vontade de comê-los

Estamos em plena época do salmonete, um peixe que é acarinhado pelos setubalenses, servido pelos restaurantes locais e até celebrado num festival gastronómico como se de um filho da terra se tratasse.

iniciativas-publico,peixe,alimentacao,vinhos,gastronomia,setubal,
Fotogaleria
iniciativas-publico,peixe,alimentacao,vinhos,gastronomia,setubal,
Fotogaleria
iniciativas-publico,peixe,alimentacao,vinhos,gastronomia,setubal,
Fotogaleria

Ainda ninguém lhe fez uma estátua, como ao choco, nem uma rotunda, como às sardinhas. Mas é só o que lhe falta. Em Setúbal, a fama do salmonete precede-o, e isso não é propriamente benéfico para a sua preservação. Mas já lá vamos. Começamos este périplo por uma pergunta: será que um dos peixes mais prezados pelos setubalenses morde o isco de quem pesca por passatempo?

Na zona ribeirinha da cidade, não falta quem tenha por hábito dominical atirar a linha às águas do Sado. Perguntamos ao espirituoso José – “só José, que eu sei lá se você é das Finanças” – se no seu poiso, junto ao Clube Naval, consegue apanhar salmonetes. A sobrancelha esbranquiçada franze-se de imediato.

– Salmonetes?

José endireita-se no banco improvisado no murete, com vista desafogada para a península de Tróia, e aponta na direcção do Mercado do Rio Azul.

– Ali à frente é que se apanham bem salmonetes. Vêm no saco de plástico e tudo.

A solenidade da afirmação só é desfeita com uma forte gargalhada em causa própria. Já recomposto, completa.

– Salmonetes, aqui, já foi o tempo deles. Agora, nem vê-los.

Então o que se apanha?

– Ando a ver se apanho um choco. Mas se só apanhar um bocado de sol já não é mau.

Não ficamos para ver se apanha o choco. O sol, pelo menos, não lhe falhará – nesta manhã do início de Outono, os termómetros já rondam os 25 graus.

A banca do Beto, no Mercado do Rio Azul, é um dos sítios para encontrar salmonete em Setúbal
Para João Valente, uma autoridade na matéria, o melhor salmonete é o da ria: não só pela alimentação, à base de bivalves e crustáceos, como pelo fundo em que se move, que contribui para a qualidade da carne.
Fotogaleria
A banca do Beto, no Mercado do Rio Azul, é um dos sítios para encontrar salmonete em Setúbal

Enquanto houver quem o pesque

Seguindo o conselho do pescador, arrepiamos caminho até ao Mercado do Rio Azul, nas imediações da Docapesca. Menos conhecido para os de fora do que o do Livramento, é nele, no entanto, que muitos setubalenses optam por se abastecer, já que os preços são consideravelmente mais baixos e a frescura garantida.

A variedade de oferta é assinalável, mas o movimento não abunda. Nem os salmonetes. Só os encontramos numa banca, a do Beto, com apenas cerca de 150 gramas cada, a 25 euros o quilo. Tão pequenos? “É o que há, não têm aparecido muito.”

Levamos quatro, para fazer numa espécie de tomatada, inspirada numa receita que João Valente serve no seu restaurante Batareo. Não está na carta, é algo que o anfitrião só põe na mesa a pedido dos muitos habitués e amigos da casa.

“O salmonete existe cá quase o ano todo, só em Maio, época do defeso, em que está ovado, é que não se pesca.” João Valente acede a sentar-se numa das mesas, antes do rebuliço da hora de almoço, a única refeição que se pode ali tomar, para explicar tudo sobre salmonetes, um peixe que conhece de ginjeira. “Este ecossistema de Setúbal é perfeito para ele, por causa da alimentação, do rio e das águas frias. Em Tavira, por exemplo, também existe muito salmonete, mas basta a água ser um ou dois graus mais quente e já não tem nada a ver.”

No Batareo, o salmonete consta da bem recheada montra de peixes, à entrada do restaurante, 11 meses por ano. Mesmo quando outros na cidade têm dificuldade em arranjá-lo, João Valente sabe a quem ligar. Só não sabe durante quanto tempo mais vai ser assim. “Já só há três ou quatro pescadores a ir aos salmonetes. Aos bons. E todos já com uma certa idade, que a malta nova não quer nada disto. Quando eles acabarem, isto acaba também.”

As perspectivas não são as melhores. Mas enquanto houver salmonete a ser pescado, haverá salmonete no Batareo.

João explica que os há de três tipos. O da ria é, para si, o melhor: não só pela alimentação, à base de bivalves e crustáceos, como pelo fundo lamacento em que se move, que contribui para a qualidade da carne. O que se apanha na zona da Arrábida, vindo da ria com as primeiras chuvas de Outono – daí ser esta a sua época preferencial – é a segunda melhor opção. Já o da costa, que se distingue por ser mais amarelado e menos rosado do que os restantes, só em último caso: “Se for comido no próprio dia, tudo bem, mas de um dia para o outro perde logo qualidade.”

Para o comum mortal, é muito difícil identificar-lhes a origem pelo aspecto. Para João, nada mais fácil. Ajuda, claro, ser filho de pescador – o pai, com 85 anos, deixou de ir ao mar há apenas três meses e ainda é presença diária no restaurante. Mas também ajudam os mais de 20 anos à frente desta casa, onde chegam a aparecer salmonetes com mais de um quilo. Foi para esses que desenvolveu uma técnica de confecção que outros, entretanto, copiaram.

“Como assar um peixe desse tamanho inteiro leva muito tempo e ele perde muita gordura, escalamos o salmonete, barramos com o fígado, que assim mantém a carne suculenta e vai fritando na própria gordura do peixe.”

No Ryori (Setúbal), Renato Velez e Nicu Iastremschii servem o salmonete num arroz cremoso com os seus fígados.
No Ryori (Setúbal), Renato Velez e Nicu Iastremschii servem o salmonete num arroz cremoso com os seus fígados.
No Ryori (Setúbal), Renato Velez e Nicu Iastremschii servem o salmonete num arroz cremoso com os seus fígados.
No Ryori (Setúbal), Renato Velez e Nicu Iastremschii servem o salmonete num arroz cremoso com os seus fígados.
Fotogaleria
No Ryori (Setúbal), Renato Velez e Nicu Iastremschii servem o salmonete num arroz cremoso com os seus fígados.

O lugar na cozinha de autor

A técnica de João Valente é conhecida em toda a cidade. Noutro restaurante local, o Ryori, o setubalense Renato Velez, que partilha a cozinha com Nicu Iastremschii, reconhece o brilhantismo do Batareo. É lá que vai quando lhe apetece um bom salmonete assado. Ou a famosa tomatada.

No seu restaurante, também utiliza a espécie, mas noutro contexto. Ora em tempura, fazendo jus à influência da gastronomia japonesa – trabalhou com o mestre Tomoaki Kanazawa durante vários anos –, ora num arroz cremoso com os seus fígados. A pedido, Renato e Nicu reproduzem a receita.

A base do caldo onde vai a cozer o arroz é, explicam, um dashi, enriquecido com cogumelos shitake e com katsuobushi, os pequenos flocos de atum bonito desidratados e fumados que são um dos ingredientes fundamentais da cozinha nipónica. “Marcamos o salmonete com manteiga, alho, louro, tomilho e pimenta preta. E temos um carabineiro aberto em alecrim que vai acentuar o sabor do salmonete”, detalha Renato.

Do salmonete, aproveitam ainda as escamas, que depois de desidratadas conferem um elemento crocante ao prato. O arroz é, no final, envolvido numa emulsão dos fígados do peixe e da cabeça do carabineiro, ficando com uma consistência semelhante à de um risoto. A alface-do-mar e o toque de espirulina ajudam a exacerbar os sabores marítimos. É um prato intenso, um autêntico mergulho nas águas locais.

Foto
A melhor maneira de celebrar o salmonete é evitar o consumo excessivo”, alerta o chef Luís Barradas.

Quem também nelas costuma mergulhar é outra figura bem conhecida da cidade e da restauração. Luís Barradas, chef de cozinha, depara-se frequentemente com salmonetes nos seus mergulhos na zona de Sesimbra. Opta, no entanto, por deixá-los lá ficar. “A melhor maneira de celebrar o salmonete é, neste momento, evitar o consumo excessivo. É uma espécie ameaçada, está em vias de extinção.”

Barradas atribui a culpa à ganchorra, arte de pesca de arrasto destinada à captura de bivalves que vivem no fundo do mar e que, segundo ele, leva consigo todo o ecossistema de que os salmonetes necessitam para prosperar.

Ainda assim, reconhece que é um peixe cheio de qualidades, sobretudo nesta época, em que sai da ria em direcção ao mar, à procura de águas mais salgadas do que salobras.

Também ele especialista em cozinha japonesa, o chef lembra-se, nos tempos do Assuka, de fazer um nigiri de salmonete que tinha muita saída. “Tirava o filete, fazia o caldo com as cabeças e pincelava-o com esse caldo. Também desidratava o fígado. E usava-o, também, no agemono (fritura) em que servia com a espinha e a cabeça.”

Foto
A tomatada de salmonete, receita original do Batareo, em versão de réplica caseira

Uma espécie de tomatada

De regresso a casa, com os quatro pequenos salmonetes comprados no Mercado do Rio Azul e duas mãos cheias de tomates bem maduros de uma banca vizinha, é tempo de pôr mãos à obra.

Primeiro um refogado com cebola e alho picado, uma folha de louro, malaguetas e temperado com sal e pimenta. Adicionam-se os tomates cortados grosseiramente, ainda com pele, meio pimento vermelho, uma colher de sopa de polpa, para ajudar, e deixa-se apurar, já com meio cálice de vinho branco, até ganhar a consistência de tomatada.

Rectificados os temperos, é adicionado um pouco de salsa, e espera-se que fique a gosto para colocar os salmonetes, com cuidado, sobre a tomatada. Tapa-se o tacho.

Os salmonetes cozinham rápido, de um lado e de outro, basta ver a carne a começar a separar-se da espinha para perceber que estão prontos. Em vez de batatas, como na receita original, juntamos umas fatias de pão frito à parte, em azeite, para ensopar na tomatada.

Temos pitéu.


Este artigo foi publicado no n.º 4 da revista Solo.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários