Cardeal francês admite ter abusado de menor
Jean-Pierre Ricard fez revelação “inédita” que caiu “como um choque” na reunião magna dos bispos franceses. Há onze bispos ou antigos bispos a contas com a justiça.
A Conferência Episcopal Francesa (CEF) revelou nesta segunda-feira que onze actuais ou antigos bispos da Igreja Católica em França estão a responder perante a justiça civil e canónica no âmbito de investigações a alegados abusos sexuais contra fiéis, incluindo crianças.
Entre os implicados estão o cardeal Jean-Pierre Ricard, que foi arcebispo de Bordéus e por duas vezes presidente da CEF, que admitiu publicamente ter abusado de uma menor, e o antigo bispo de Luçon e Créteil Michel Santier, sobre o qual surgiram relatos de abusos na imprensa religiosa francesa durante as últimas semanas.
Através de uma carta breve que terá chegado à conferência episcopal no domingo e que foi lida nesta segunda-feira aos jornalistas pelo actual presidente do órgão que congrega os bispos franceses, Éric de Moulins-Beaufort, o cardeal Ricard admite que “há 35 anos, quando era padre”, agiu “de forma repreensível com uma rapariga de 14 anos”. O prelado, que integra agora a Congregação para a Doutrina da Fé, afirma que pediu perdão directamente à vítima e que está disponível para colaborar com as autoridades civis e canónicas. “O meu comportamento provocou inevitavelmente consequências graves e duradouras a esta pessoa”, diz Ricard na carta.
A revelação do cardeal apanhou os bispos e os fiéis católicos de surpresa. O caso escapou ao escrutínio da Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja (CIASE), que foi criada em 2019 e entregou o seu relatório final há um ano.
Apesar de concordar que se trata de um gesto “inédito” por parte de um alto responsável eclesiástico, a presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas de França, que esteve na origem da CIASE, mostra-se revoltada com a novidade. “O verdadeiro choque não é que ele tenha falado, é que ele tenha feito o que fez”, indigna-se Véronique Margron à revista cristã La Vie. “E a expressão ‘comportamento repreensível’ está sujeita a múltiplas interpretações. Isso significa tudo e nada. É preciso sabermos do que estamos a falar!”
Éric de Moulins-Beaufort reconheceu que a conferência recebeu a revelação de Ricard “de forma inesperada” no domingo e que esta caiu “como um choque” no meio da assembleia plenária de bispos que se realiza em Lourdes até esta terça-feira.
Um dos tópicos na agenda para os 120 bispos presentes é a melhoria da comunicação entre a hierarquia eclesiástica e os fiéis sobre a forma como os abusos são tratados. A assembleia decorre quase totalmente à porta fechada e a conferência de imprensa desta segunda não constava do programa inicial.
Sobre Michel Santier recaem acusações que têm causado choque e irritação entre os fiéis, tanto pelas suspeitas como pelo alegado encobrimento da hierarquia eclesiástica. Foi através da imprensa religiosa que se ficou a saber, em meados de Outubro, que pelo menos dois homens dizem que Santier os obrigava a despirem-se durante as confissões quando eram alunos de uma Escola de Fé para jovens adultos (18 a 30 anos) que o então padre dirigia, na década de 1990.
A denúncia desses casos terá chegado a dois bispos em 2019. Segundo a revista Famille Chrétienne, Michel Santier abandonou precocemente o bispado de Créteil, em 2021, quando o Vaticano lhe impôs uma sanção por ter praticado “abusos espirituais com fins sexuais” sobre dois homens. Mas só agora, mais de um ano depois, é que o assunto se tornou do conhecimento público.
E a própria sanção está a indignar associações de vítimas e de fiéis. O antigo bispo foi condenado a “residir no seio de uma comunidade religiosa, com um ministério limitado à vida dessa comunidade”.
“O caso Santier mostra-nos que, apesar da CIASE, os bispos não mudaram o sistema para combater os abusos. Ainda continuam a infantilizar os católicos”, disse à La Vie uma vítima de abusos, Yolande du Fayet de la Tour, que integrou movimentos de pessoas que foram vítimas de abuso.
Questionado especificamente sobre este caso no domingo, de regresso ao Vaticano depois de uma visita ao Bahrain, o Papa Francisco disse que “a Igreja está decidida” a “clarificar tudo”, ainda que haja “gente dentro da Igreja que não vê as coisas assim”. “A primeira coisa que devemos sentir é a vergonha, a vergonha profunda”, afirmou o pontífice.