Louis Armstrong: Vida e Jazz — O mundo segundo Louis Armstrong
Um novo documentário na Apple TV+ revela-nos o homem que se escondia por trás de um dos entertainers mais icónicos do século XX.
À medida que o espelho retrovisor vai deixando o século XX mais para trás, começamos também a perder de vista algumas das suas figuras mais importantes. Isto não se deve, apenas ou exclusivamente, a uma questão de tempo que vai passando; deve-se também ao modo como o nosso próprio presente vai mudando a nossa visão sobre o passado. Louis Armstrong: Vida e Jazz – no original Louis Armstrong’s Black & Blues – reflecte certeiramente, com uma inteligência vivaz, os processos de reavaliação que se vão criando com o tempo. O filme de Sacha Jenkins, lançado em finais de Outubro na plataforma Apple TV+, explica de forma urgente como a vida e a obra do lendário trompetista americano merecem ser redescobertas nos dias sombrios que vivemos.
De facto, Vida e Jazz começa por subverter os clichés do documentário biográfico: não existem as proverbiais “cabeças falantes” de amigos e conhecidos entrevistados. Em seu lugar, uma combinação de imagens de arquivo imaculadamente pesquisadas e construções visuais que se assemelham a “álbuns de recortes”, semelhantes aos que Armstrong fazia para si próprio. As “cabeças falantes” passam a “vozes off” que ilustram as imagens, entre as quais se incluem a do próprio trompetista, que tinha em casa um gravador de bobinas no qual registava muitas vezes conversas e encontros com visitas. A própria estrutura fluida da narração, que não respeita uma cronologia linear, apenas amplifica a ideia de estarmos a fazer uma viagem ao sabor das memórias de Armstrong, justapondo a sua imagem pública à sua realidade privada.
Jenkins tem em carteira uma série de documentários sobre o hip-hop e a sua dimensão sociológica; não surpreende por isso que peça ao rapper Nas que leia os escritos de Armstrong, nem que o seu filme procure compreender o impacto social que a figura do trompetista teve durante os seus 70 anos de vida (1901-1971). Crescendo nos tempos da segregação racial, o músico compreendeu muito cedo que uma imagem “neutra” garantiria a sua sobrevivência, e só já no final da sua carreira se pronunciou publicamente a favor das lutas pelos direitos civis, que apoiava em privado. Esse silêncio raramente interrompido tornou-o alvo das franjas mais radicais dos movimentos de libertação que o consideravam um “Pai Tomás” que perpetuava a imagem estereotipada do negro subalterno e silencioso.
Mas no outro prato da balança estava o modo genial como Armstrong veio mudar o jazz: durante uma longa aprendizagem em bandas e orquestras, até mesmo acompanhando filmes mudos ou tocando em bordéis, a excepcional originalidade e segurança das suas técnicas, improvisação e vocalização fizeram dele uma figura ímpar, de influência duradoura, no mundo do jazz. E não só: tornou-se um dos raros músicos de jazz verdadeiramente globais, reconhecidos mundialmente de África à Rússia, embaixador da música com M maiúsculo com um sorriso perpétuo no rosto e uma capacidade de alegrar todos aqueles que o rodeavam.
O retrato que Jenkins faz do músico revela os bastidores dessa dualidade: o jazzman que nunca perdeu de vista a razão pela qual era verdadeiramente popular e nunca esqueceu as suas origens, o entertainer que chorava por dentro, enquanto sorria para o mundo, ciente do muito que a comunidade que representava sofria. O realizador nunca escamoteia a dimensão moral das escolhas de Armstrong, antes as contextualiza num período conturbado da história, para nos permitir compreender as suas opções. Afinal, todos somos também resultado do mundo e dos tempos em que vivemos. Louis Armstrong era um filho do seu tempo, e nunca deixou de defender o “wonderful world this could be”.