A luta para fugir ao círculo vicioso da dívida e do clima

Países mais vulneráveis nunca receberam os 100 mil milhões de dólares anuais prometidos para lidar com as alterações climáticas. Agora querem pôr a dívida externa nas negociações.

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Estados-ilha, como as Maldivas, são dos mais vulneráveis às alterações climáticas Reinhard Krause/REUTERS

Em 2009, na Cimeira do Clima de Copenhaga, os países desenvolvidos comprometeram-se a alcançar a meta em 2020 de mobilizar 100 mil milhões por ano para apoiar as necessidades dos países em desenvolvimento relativas às alterações climáticas. A meta foi, entretanto, adiada para 2025 e nunca se conseguiu mobilizar essa soma. Na cimeira que agora começa no Egipto (COP27), este tema atravessará os debates.

Os países mais vulneráveis aos efeitos do aquecimento global, como a subida do nível dos mares ou as tempestades que se tornam mais intensas e frequentes, pedem não só que se cumpra esta promessa, como querem tornar claro que as crises do clima e da dívida são uma e a mesma.

Acompanhe a COP27 no Azul

A Cimeira do Clima das Nações Unidas é o ponto mais alto da diplomacia em torno das alterações climáticas, onde os países discutem como travar as emissões de gases com efeito de estufa que causam o aquecimento global. Este ano é no Egipto, de 6 a 18 de Novembro. Acompanhe aqui a Cimeira do Clima. 

“A crise climática exacerba as vulnerabilidades climáticas, e os elevados níveis de dívida reduzem a capacidade destes países de lidar com a emergência climática. A crise do clima acaba por se tornar uma crise de dívida e vice-versa. É aquilo a que chamamos o círculo vicioso da dívida e do clima”, explicou ao PÚBLICO Iolanda Fresnillo, da Rede Europeia da Dívida e do Desenvolvimento (Eurodad, na sigla em inglês), que engloba 58 organizações da sociedade civil de 28 países europeus.

Por isso, o grupo V20, que reúne 58 dos países mais vulneráveis às alterações climáticas, está a pedir a renegociação da sua dívida, ou uma troca da dívida por medidas de conservação da natureza.

Mohamad Nasheed, ex-Presidente das Maldivas, sugeriu mesmo a possibilidade de estes países suspenderem o pagamento da dívida externa, noticiou o jornal New York Times. Nos próximos seis anos, os países deste grupo têm de pagar 436 mil milhões de dólares, nos cálculos do Centro de Políticas Globais de Desenvolvimento da Universidade de Boston, citados pela revista New Republic.

“Para clarificar, o V20, enquanto grupo, não disse que pode deixar de fazer pagamentos se não houver alívio da dívida. Apelou a uma reestruturação da dívida e avançou a proposta de usar garantias através dos bancos multilaterais de desenvolvimento [como o Banco Mundial] para levar os credores privados para a mesa de negociações. Esta proposta dá, na verdade, confiança aos credores de que serão reembolsados”, explicou ao PÚBLICO Rishikesh Ram Bhandary, do Centro de Políticas Globais de Desenvolvimento da Universidade de Boston.

“Devemos ver a citação no New York Times mais como uma expressão da urgência em lidar com a crise dupla das alterações climáticas e da dívida”, sublinha Rishikesh Ram Bhandary.

“A ameaça de deixar de pagar a dívida é a única coisa que, historicamente, levou os credores a trabalhar na reestruturação ou no cancelamento da dívida”, diz Iolanda Fresnillo. “Mas temos de ver quão credível é essa ameaça para os credores. Na actual arquitectura financeira internacional, os países com dívida enfrentam importantes dificuldades se falharem pagamentos, em especial a ameaça dos credores de os processarem em tribunais internacionais”, explica.

Adaptação é o parente pobre

A crise da dívida relacionada com o clima e a promessa dos 100 mil milhões são dois temas sensíveis para a COP27, portanto. Em 2020, o último ano para o qual existem cálculos, o dinheiro mobilizado para os países mais vulneráveis foi de 83,3 mil milhões, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. “Prevê-se que os países desenvolvidos consigam atingir a meta de 100 mil milhões de dólares em 2023”, de acordo com os mais recentes relatórios, disse Rishikesh Ram Bhandary.

Esse dinheiro devia ser usado em partes iguais para projectos de mitigação (redução das emissões de CO2) e de adaptação às alterações climáticas, mas sistematicamente são os de mitigação que recebem mais financiamento. O dinheiro para projectos de adaptação nos países em desenvolvimento é entre cinco e dez vezes abaixo do que seria necessário, calcula um relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente, saído esta semana.

Como os benefícios de reduzir as emissões são globais e não se confinam apenas ao país que põe em práticas as medidas, há um maior apetite pelos projectos de mitigação, explica Rishikesh Ram Bhandary.​

Essencialmente, isto tem que ver com os ganhos que se podem tirar dos investimentos feitos”, salienta Leia Achampong, também da rede Eurodad. “As actividades de mitigação tipicamente dão lucros que permitem reembolsar empréstimos e tendem a ser tecnologias mais maduras (por exemplo, de energias renováveis), o que significa que o sector privado por ser incluído mais facilmente”, salienta.

Já os projectos de adaptação, como a plantação de árvores para evitar a erosão dos solos e reduzir as cheias causadas por tempestades, exemplifica Leia Achampong, não costumam dar lucros que possam ser usados para pagar empréstimos. “O alto nível de endividamento dos países do Sul Global reduz a sua capacidade de obter capital para actividades com reduzidas margens de lucro, como os projectos de adaptação”, diz. Por isso se defende que o financiamento deve ser prioritariamente em subvenções e não através de empréstimos ao contrário do que acontece agora.

“Os países do Sul Global temem que se tenha normalizado este falhanço em atingir o objectivo dos 100 mil milhões”, diz Leia Achampong. Por isso, está a ser posta muita ênfase em desenvolver um Novo Objectivo Colectivo Quantificado de Finanças do Clima (NCQG, na sigla em inglês) para além de 2025. “Teria mecanismos para verificar efectivamente o progresso, e análises regulares, algo que o objectivo dos 100 mil milhões não teve”, adianta.

Perdas e Danos

Este objectivo tem muitas limitações. “Não cobre as perdas e danos” causados pelos desastres que têm origem no aquecimento global, sublinha Leia Achampong. Esta questão pressupõe que os países mais ricos, e que historicamente mais emitiram gases com efeito de estufa para a atmosfera, como os Estados Unidos e os países da União Europeia, compensem os países mais pobres e vulneráveis pelos efeitos das alterações climáticas que estão já a acontecer neste momento.

“As finanças climáticas que existem – os 100 mil milhões de dólares não cobrem este tema crucial”, sublinha Leia Achampong. “Há décadas que os países do Sul Global apelam a apoio financeiro para as perdas e danos causados pelos impactos das alterações climáticas. Os custos estão a escalar e não existe nenhum mecanismo de financiamento ao abrigo da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas [as conferências do clima são as reuniões anuais dos signatários deste tratado] para garantir esses fundos.”

“A COP27 devia fazer incidir um foco sobre os impactos das alterações climáticas que já estão a acontecer em África, como a fome no Corno de África, onde 22 milhões de pessoas estão em risco de morrer de inanição. Mais de 1,1 milhões já tiveram de se deslocar por causa da seca, e alguns passaram as fronteiras internacionais e estão em campos de refugiados como o complexo de Dadaab no Norte do Quénia”, comentou Steve Trent, líder da organização não-governamental britânica Fundação para a Justiça Ambiental.

“Mas há mais vontade política de discutir o tema das perdas e danos agora do que no passado”, comenta Rishikesh Ram Bhandary. “Há necessidade de soluções criativas para que os países mais vulneráveis às alterações climáticas consigam ter a ajuda de que precisam.” Uma forma de avaliar o sucesso da COP27, diz Leia Achampong, será “verificar se os países chegam a acordo sobre um mecanismo de financiamento de perdas e danos”. Com A.A.S.