Museus para quem? Uma história cultural para todos

A nova definição de Museu permite um mote essencial para repensar o diálogo que os museus podem estabelecer com a comunidade, num país cuja maioria da população admite nunca ter visitado um.

Foto
Nelson Garrido

Para a esmagadora maioria dos trabalhadores, a nossa arte, sendo-lhe inacessível devido ao seu preço, ainda mais estranha lhe é devido ao próprio conteúdo, transmitindo sentimentos de pessoas que estão afastadas das condições da vida laboral, próprias da maior parte da humanidade.

Em 1897, o escritor russo Lev Tolstoy, no seu ensaio O que é a arte?, reflectia desta forma sobre a brutal desigualdade social que transformava a arte e a cultura em campos elitistas, profundamente desligados das aspirações populares. Não que a maior parte da população não manifestasse e desenvolvesse expressões culturais, mas apenas que o universo cultural de um operário nunca seria reconhecido como tal dentro das representações que homogeneizavam a noção de arte que circulava pelas esferas altas da sociedade.

125 anos volvidos e o problema da desigualdade e da acessibilidade continuam presentes quando discutimos sobre cultura. Se, em boa medida, as manifestações culturais populares foram, a diferentes ritmos, ganhando espaço e, até, apropriadas pela elite como parte integrante de identidades culturais regionais ou nacionais (vejam-se os casos do Flamenco, do Fado, ou do Cante Alentejano, entretanto declarados património cultural imaterial da humanidade pela UNESCO), e as propagação de novos meios de comunicação e a revolução digital permitiram uma maior circulação e democratização de expressões culturais, também é verdade que existe, entre outras, uma forma cultural que continua a falar pouco com o povo. É o caso do Museu, cujas origens, aliás, remontam às representações culturais e ideias políticas das elites novecentistas.

O recente alargamento às questões da inclusão que representa a nova definição de Museu pelo ICOM permite um mote essencial para repensar o diálogo que os museus podem estabelecer com a comunidade, num país cuja maioria da população admite nunca ter visitado um. Ou seja, temos um desfasamento discursivo claro entre as narrativas que os museus trabalham e os interesses culturais que as pessoas manifestam. Na medida em que o museu deve servir a comunidade e não o contrário, estratégias de reforma não passam por preconceitos fáceis e genéricos, mas antes pelo reformular da forma como observamos o papel do museu na sociedade.

Sendo, idealmente, o espaço predilecto para depositar, salvaguardar e expor o património material e imaterial comum, é pela forma de interpretar as suas colecções que podemos ter um museu mais ou menos ligado à comunidade cuja história cultural tenciona representar. Através de novas investigações que se fizerem às colecções e aos seus objectos podemos destapar camadas interpretativas que nos ajudem a relacionar as mesmas com a comunidade, criando elos de afectividade e de representatividade. O contexto histórico de uma colecção ou de um simples objecto ajudará a potenciar a utilidade que o mesmo pode ter no estímulo de narrativas inclusivas dentro dos museus. Nessa medida, os novos orçamentos para a cultura devem garantir meios para que tal suceda.

Perante as recentes críticas manifestadas por directores de museus quanto à falta de técnicos superiores que garanta, pelo menos, a continuidade do conhecimento interno, a nossa preocupação deverá relacionar essa falta de meios com a ausência de uma resposta eficaz que torne o museu num espaço mais inclusivo e atractivo para a comunidade (ainda que haja algumas excepções que, com quase nada, têm conseguido “brilharetes” louváveis e surpreendentes).

O museu não se pode limitar a guardar objectos, deve saber trabalhá-los e, criando narrativas científicas, incluí-los na história cultural da (e com a) comunidade e conceder perspectivas de longa duração que permitam que, por exemplo, alguém nascido no século XXI se sinta conectado com objectos com centenas ou milhares de anos, não só pela sua materialidade, mas sobretudo pela sua narrativa identitária de relação com o presente. Por essa via um museu poderá ser um autêntico pólo de desenvolvimento cultural ao serviço da população, dialogando com as diversas instituições que compõem a sociedade.

Numa altura em que o novo OE está a ser discutido, este é um problema que poderá ser resolvido mediante as suas prioridades. O povo português visitará mais vezes um museu quantas mais vezes aí se sentir em casa. Assim haja gente para o permitir.

Sugerir correcção
Comentar