O corpo é como um cão: rosna antes de morder

Mandaram-na para casa, sedada por intravenoso e com a advertência “nada de trabalhar nos próximos dias”. Não podia respeitá-la. Tinha trabalhos para fazer e contas para pagar.

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Oscar Keys/Unsplash

Depois de um domingo de intenso trabalho ao computador, na sua profissão não há fins-de-semana nem feriados, decidiu dar um passeio. A sua cabeça por dentro era uma nuvem, um amontoado de eventos recalcados que se assemelhava a lixo prensado, prestes a chover porcarias, como percebeu mais tarde.

Caminhou por longos momentos até chegar ao Jardim Gulbenkian, em Lisboa; talvez uma exposição servisse de mulher-a-dias para tantas ideias usadas como uma retrete pública. Antes de entrar no edifício sentiu o coração bater de forma irregular. Estranho movimento interno que a perturbou. Teve a certeza de que algo se passava.

Em vez de entrar no edifício inverteu a marcha e decidiu caminhar pelo jardim. Tentou enviar uma mensagem ao namorado mas, de repente, não sabia onde ficava a tecla Z no telefone. Tinha uma branca. Queria escrever “o meu coração está marado às vezes”, e ficou em “ve” porque não sabia localizar a tecla. Assustou-se. Será que lhe estava a dar uma coisa má ou talvez fosse apenas cansaço? Chamou um Uber, não quis alarmar ninguém, nem mesmo o namorado.

No hospital sentiu-se uma histérica, depois das análises e dos exames não se passava nada. Tudo fruto da sua cabeça. Uma moleirinha exausta de saltitar entre projectos e ideias há mais de seiscentos dias seguidos. Dois anos inteirinhos sem pausas. O médico mandou-a abrandar o ritmo. O corpo dava sinal de perigo, como um cão que rosna antes de morder.

“Tem de ouvir o cão, se rosna é porque há perigo.” Mandaram-na para casa, sedada por intravenoso e com a advertência “nada de trabalhar nos próximos dias”. Não podia respeitá-la. Tinha trabalhos para fazer e contas para pagar. Não se sentia bem antes, mas agora com o sedativo não sentia nada. O cão tinha-se calado. Sabia que provavelmente iria recomeçar em breve a rosnar, porém tinha de retomar a vida, açaimar o cão e rezar, mesmo sendo ateia, para que o perigo anunciado nunca fosse um abocanhar com dor, uma mordida.

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