Martim Melo passou anos a ouvir um canto único. Agora, descreve nova espécie de mocho

O biólogo português descreveu o mocho-do-príncipe mais de 20 anos após ter ouvido o seu canto distintivo pela primeira vez. A ave é endémica da ilha do Príncipe — e estará fortemente ameaçada.

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Estima-se que haja 1000 a 1500 indivíduos do mocho-do-príncipe Philippe Verbelen

Uma equipa internacional de investigadores, vários dos quais são portugueses, acaba de descrever uma nova espécie de mocho na ilha do Príncipe, parte do arquipélago de São Tomé e Príncipe. Endémica, a ave vive numa pequena parcela do Parque Natural Obô, uma área protegida, e distingue-se pelo seu canto único, que segundo os investigadores pode “lembrar o de insectos”. Estima-se que haja 1000 a 1500 indivíduos do mocho-do-príncipe (Otus bikegila), conforme foi baptizado. Os investigadores recomendam que a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla inglesa) classifique a espécie como “criticamente ameaçada”.

O mocho-do-príncipe foi descrito na revista científica ZooKeys, com base em dados sobre, por exemplo, a sua morfologia e cor, os padrões da sua plumagem e, claro, as suas distintivas vocalizações. A equipa de investigadores que recolheu e tratou tais dados foi liderada por três elementos do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio): Angelica Crottini, Bárbara Freitas (também do Museu Nacional de Ciências Naturais, em Espanha) e Martim Melo (também do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto).

Martim Melo passou mais de duas décadas a ouvir o canto singular do mocho-do-príncipe. Tudo começou em 1998, quando o seu projecto de mestrado o levou até à ilha do Príncipe para estudar o papagaio-cinzento, espécie presentemente classificada pela IUCN como “em perigo”. No terreno, ouviria uma vocalização invulgar, que não era a de qualquer espécie descrita cientificamente.

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Martim Melo e Bikegila, o homem são-tomense que já foi apanhador de papagaios (hoje é guarda do Parque Natural Obô) e que foi muito importante no trabalho de descrição da espécie Bárbara Freitas

É assim que, num comunicado de imprensa, o investigador e especialista em aves descreve o som emitido pelo agora descrito mocho-do-príncipe: “Podendo lembrar o canto de insectos, o seu chamamento é uma nota curta, ‘tuu’, repetida cerca de uma vez por segundo. Muitas vezes, é emitido em dueto, logo após o cair da noite.”

No âmbito do seu projecto de mestrado, Martim Melo recolheu depoimentos do são-tomense Ceciliano do Bom Jesus, então um apanhador de papagaios conhecido localmente como Bikegila (o nome científico do mocho-do-príncipe é uma homenagem a este homem). Bikegila falou-lhe de um par de ocasiões, no início da década de 1990, em que ele ou colegas seus deram de caras, nas alturas, com uma ave desconhecida, escondida em buracos de árvores com ninhos de papagaios.

“O Bikegila falou-me da ave como sendo feia e algo mal-encarada. É a descrição que as pessoas costumam fazer das aves de rapina nocturnas. Percebi que poderíamos estar perante uma espécie desconhecida de mocho”, explica Martim Melo ao PÚBLICO.

O investigador voltou ao Príncipe em 2002, quando ouviu e gravou os misteriosos cantos na zona da floresta onde, teoricamente, o mocho-do-príncipe teria sido avistado. Reparou que, embora as notas dos cantos estivessem na mesma faixa de frequência que as notas das vocalizações dos vários mochos do género Otus, os sons eram diferentes dos de espécies conhecidas. “Assim, se os cantos viessem de facto de um mocho, tratar-se-ia quase certamente de uma espécie desconhecida para a ciência”, salienta-se no já citado comunicado.

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A ave ocupa uma área de apenas 15 quilómetros quadrados, numa pequena parcela do Parque Natural Ôbo Philippe Verbelen

Uma carta secular

O terceiro capítulo desta história deu-se em 2007, quando Martim Melo se deslocou até à ilha com Martin Dallimer, da Universidade de Leeds (Inglaterra). O seu objectivo era sobretudo estudar a distribuição e abundância do criticamente ameaçado tordo-do-príncipe, mas a dupla também queria determinar a origem dos chamamentos. Foram feitas novas gravações, tendo sido também desenhado um mapa dos cantos, mas os dois investigadores não conseguiram ver nenhum mocho-do-príncipe.

Dois anos mais tarde, a bióloga Rita Covas, também ela do Cibio, visitou em Nova Iorque o Museu Americano de História Natural (AMNH, na sigla inglesa) e descobriu nos seus arquivos uma carta do português José Correia. Em 1928 e 1929, este esteve no golfo da Guiné, onde São Tomé e Príncipe também fica, a propósito de uma expedição encomendada pelo AMNH, para o qual trabalhava. A sua missão consistiu em caçar aves e depois mandar a pele, com as respectivas penas, para o museu, onde as respectivas espécies viriam a ser estudadas e descritas.

A carta descoberta por Rita Covas nos arquivos do AMNH foi escrita a 3 de Outubro de 1928 na ilha do Príncipe. Nela, José Correia explicava a Robert Cushman Murphy, ornitólogo do AMNH, que até então ainda não vira nenhum mocho na ilha, porém já havia ouvido histórias sobre mochos raros, que eram vistos nas “florestas selvagens” muito de longe a longe (a cada dez anos, por exemplo).

“A carta deu-me força, mostrou-me que havia suspeitas antes das minhas”, conta Martim Melo ao PÚBLICO. “Ainda havia muita indefinição — os tais mochos raros podiam ser aves migratórias, por exemplo —, mas também havia razões para acreditar que valia a pena continuar a escavar.”

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O investigador Martim Melo ouviu o canto do mocho-do-príncipe pela primeira vez em 1998, mas só viu um indivíduo com os seus próprios olhos 20 anos mais tarde Martim Melo

Em 2009, num artigo escrito com Martin Dallimer para a revista científica Malimbus, o investigador português reuniu todas as informações que já conseguira recolher sobre a misteriosa espécie. E pediu a observadores de aves que, num “esforço particular”, o ajudassem. “Apelámos a que quem fosse ao Príncipe fizesse observações nocturnas, indo até às florestas distantes onde tínhamos ouvido os cantos”, lembra.

O apelo seria respondido por Philippe Verbelen. Em 2016, este observador de aves belga esteve naquilo que subsiste da floresta nativa na região desabitada do Sul da ilha (a região onde Martim Melo sempre ouvira os cantos). Lá, pôs a tocar as gravações do português. “Muitas vezes, estes cantos são territoriais, pelo que, se os reproduzirmos, podemos conseguir atrair o animal para ele defender o território”, explica este último. Martim Melo não teve sucesso quando tentou fazer isto em 2007. A 4 e 5 de Julho de 2016, Philippe Verbelen teve sorte e avistou a ave.

Em Maio de 2017, Bikegila (que deixou de ser apanhador de papagaios, estando agora a trabalhar como guarda do Parque Natural Obô) e Hugo Pereira, do Departamento de Comportamento Animal da Universidade de Bielefeld (Alemanha), capturaram um mocho-do-príncipe na mesma zona. O exemplar serviu de referência para descrever a nova espécie.

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Martim Melo e, em ponto pequeno na imagem, um mocho-do-príncipe Luís Valente

Em 15 quilómetros quadrados

Se o mocho-do-princípe surge descrito na ZooKeys, um segundo artigo, publicado na revista Bird Conservation International, inclui estimativas referentes aos seus números populacionais e informações sobre a sua distribuição. Os investigadores conseguiram estes dados após terem monitorizado extensivamente toda a ilha do Príncipe.

Os resultados mostram que a ave, que prefere altitudes mais baixas, ocupa uma área de apenas 15 quilómetros quadrados, na tal parte desabitada da zona Sul do Príncipe. A sua densidade é relativamente alta (1000 a 1500 indivíduos num espaço curto), mas, como todos os indivíduos ocorrem num só local (do qual uma parte será afectada num futuro próximo pela construção de uma barragem hidroeléctrica), os investigadores recomendam que a IUCN classifique a espécie como criticamente ameaçada.

Martim Melo diz que, “como muitas espécies do género Otus”, o mocho-do-príncipe tem “duas ‘formas’, duas cores de plumagem”. Tanto há indivíduos com penas de cor unicamente castanha, como indivíduos com penas cinzentas à frente e castanhas atrás. A plumagem destas aves serve para “estarem camufladas durante o dia, que é quando dormem”.

Um mocho-do-príncipe que nasça com penas castanhas não consegue adquirir penas cinzentas mais à frente, mas a cabeça de um único indivíduo desta espécie pode mudar de forma em momentos distintos. Quando a ave está mais descontraída, a sua cabeça tem um aspecto mais “redondinho”. Quando está mais alerta, “parece que a cabeça se transforma em duas orelhas, ou dois bicos”, explica Martim Melo.

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Ilustração que mostra as diferentes penas — e formas de cabeça — que a espécie pode apresentar Marco Correia

O investigador e os restantes responsáveis pela descrição do mocho-do-príncipe dizem que a “descoberta de uma nova espécie que é imediatamente avaliada como altamente ameaçada ilustra bem a actual crise da biodiversidade”. Por outro lado, o facto de a ave ocorrer numa zona pertencente ao Parque Natural Obô deverá contribuir para a sua protecção, consideram.

Os investigadores desenvolveram uma espécie de projecto-piloto no âmbito do qual colocaram gravadores automáticos na área de distribuição do animal. Um sistema de inteligência artificial “leu” as múltiplas horas de gravação, tendo sido treinado para identificar o canto do mocho-do-príncipe. Concluída a fase experimental, este projecto deverá ser posto em prática por técnicos locais. Espera-se que, no âmbito dos esforços de monitorização da espécie, ele ajude a obter estimativas mais precisas do número de indivíduos.

Martim Melo está, naturalmente, muito feliz por, mais de 20 anos após ter ouvido pela primeira vez o canto do mocho-do-príncipe (e quatro após ter visto um indivíduo com os seus próprios olhos), ter finalmente descrito a espécie. “Quando era mais novo, custava-me a crer que descobriria uma espécie nova. Foi engraçado este processo, este mistério que aos poucos se foi adensando — e que aos poucos fomos resolvendo. É um momento de festa.” E, também, um passo importante para proteger o animal.