4.0
O Twitter na esfera de influência da China
Uma newsletter de João Pedro Pereira sobre inovação, tecnologia e o futuro.
Ocorreu um erro. Por favor volta a tentar.
Subscreveu a newsletter 4.0. Veja as outras newsletters que temos para si.
Na quarta-feira, Elon Musk entrou nas instalações do Twitter com um lavatório nas mãos, para poder fazer o trocadilho com a expressão inglesa "let that sink in". Na sexta, no limite do prazo dado pelo tribunal, o negócio estava fechado.
Talvez por questões estratégicas, talvez para aliviar o que foi uma derrota negocial, Musk despediu os executivos de topo (algo que já era esperado; a surpresa foi ter alegado justa causa para tentar evitar as indemnizações milionárias). Despediu também funcionários em funções-chave, incluindo na moderação de conteúdos.
Algumas das consequências da compra têm vindo a ser escalpelizadas, incluindo em editorial aqui no PÚBLICO.
Este não é um negócio comum. Para começar, não se tratou de uma empresa a comprar outra (como quando o Facebook comprou o Instagram ou o Whatsapp). Trata-se de um indivíduo a comprar uma rede social para a retirar de bolsa (conseguindo, assim, menos escrutínio) e para a gerir como entender. O que é legítimo, mas, neste caso, preocupante.
Musk é conhecido tanto pelo seu comportamento errático, como pelas suas ideias libertárias. Porém, não é nestas características do agora "rei-sol do Twitter" que residem os maiores perigos para uma rede social que é a mais influente do mundo ocidental (não é a maior, mas é aquela onde estão mais decisores e influenciadores políticos).
O risco, para o Twitter e não só, está na exposição que Musk tem, por via dos outros negócios, a países que lidam mal com a liberdade de expressão e com os direitos humanos, a países que são ditaduras ou que têm especial interesse em interferir na vida doméstica de outros estados. A China surge à cabeça.
O passado mostrou-nos que as empresas tecnológicas – com políticas mais consistentes do que as de Elon Musk, com menos vontade de aparecer na arena geopolítica e até menos expostas ao mercado chinês – acabaram por se vergar a Pequim. Aconteceu com o Yahoo, a Microsoft, o Facebook e o Google. Em diferentes momentos (e em diferentes graus) todas aceitaram censurar informação ou entregar dados pessoais (de dissidentes, opositores, jornalistas) para poderem continuar a fazer negócios na China.
A China, contudo, não tem importância comercial para o Twitter: Pequim baniu a plataforma. Mas este é um país crucial para a Tesla, que, ao longo dos anos, tem ali recebido um tratamento privilegiado por parte dos reguladores.
Para começar, a China é o segundo maior mercado da marca, com 400 mil automóveis vendidos nos primeiros oito meses do ano, um crescimento de 67% em relação a 2021. Setembro foi um mês de recorde de vendas, mesmo com a economia chinesa a dar sinais de fraqueza.
Mais do que isso: a maior fábrica da empresa está em Shanghai, com uma capacidade de produção que excede os 750 mil carros por ano. Na Califórnia, a capacidade de produção, distribuída por duas fábricas, é de 650 mil automóveis. As fábricas do Texas e as de Berlim conseguem produzir mais de 250 mil unidades cada uma (o que faz com que, no total, os EUA ainda sejam o maior país de produção). É também de Shanghai que saem quase todos os carros que a Tesla vende fora dos EUA.
Claro, ninguém achará crível que Musk receba telefonemas de Xi Jinping com instruções (embora, provavelmente, ninguém ficasse surpreendido se Musk viesse twittar que tinha tido conversas com o líder chinês). Mas a influência não se concretiza assim; muitas vezes, basta o simples facto de que ambas as partes sabem o que a outra pode fazer: Musk sabe que Pequim pode causar sérios entraves ao negócio da Tesla, e Pequim sabe que Musk está bem ciente disto. O empresário já por mais do que uma ocasião fez questão de bajular publicamente a China. Este mês, sugeriu que o Governo de Taiwan devia ceder algum do controlo da ilha a Pequim – o que mereceu imediato aplauso do regime chinês.
Note-se que o interesse de Pequim no Twitter não tem nada a ver com questões internas. As plataformas digitais usadas pela população chinesa são outras, e as máquinas de cibercensura e cibervigilância no país são poderosas. Mas, como os últimos anos mostraram, as redes sociais do Ocidente são apetecíveis para um país que queira influenciar a opinião pública e até eleições no estrangeiro.
A China é a maior fonte de preocupações, mas não a única. Olhemos para a Índia.
O país é o quarto mercado mundial em número de automóveis vendidos, mas é um mercado onde a Tesla não está presente. Isto deve-se a uma disputa entre a empresa e o Governo indiano: o Governo queria que a Tesla fabricasse carros no país, mas não estava disposto a ceder às exigências da empresa no que diz respeito às tarifas de importação dos carros fabricados na China. Em Maio, Musk disse que não iria fabricar carros num país onde não os pudesse vender. Ambas as partes têm interesses em jogo e é concebível que venham a chegar a um compromisso.
Além disso, a Space X, a outra grande empresa de Musk, está a tentar lançar o Starlink, o seu serviço de Internet por satélite, na Índia, o que requer aprovações regulatórias.
Ora, o que fará Musk quando as autoridades indianas ameaçarem outra vez prender funcionários do Twitter porque estes não silenciaram utilizadores críticos do Governo?
Por fim, há a questão dos investidores. Elon Musk pode ter uma fortuna avaliada em 204 mil milhões de dólares, mas não tem 204 mil milhões de dólares no banco para gastar. O que os grandes "bilionários" têm é facilidade em arranjar quem lhes empreste dinheiro. A seguir aos bancos, os maiores financiadores da compra do Twitter foram o fundo soberano da Arábia Saudita e o príncipe saudita Alwaleed bin Talal Al Saud, com um total de 1,89 mil milhões de dólares (através das acções do Twitter que já detinham e que passaram para a nova empresa, onde são o segundo maior accionista). O fundo soberano do Qatar participou com 375 milhões de dólares.
São países com um fraco historial de direitos humanos. Uma mulher saudita foi recentemente condenada a 34 anos de prisão por ter escrito tweets. No ano passado, um homem que vivia nos EUA foi preso enquanto visitava a família na Arábia Saudita e condenado a 16 anos, também por publicações na rede social. Não são casos isolados.
O pássaro está livre, disse Musk aquando da conclusão da compra. Na verdade, o pássaro pode ter voado para as mãos da China e de outros repressores. E Musk, com todo o seu estatuto e fortuna, está de mãos mais atadas do que se possa pensar.