Vitória de Lula acentua viragem da América Latina à esquerda
Cinco maiores economias da região vão ser lideradas por Governos progressistas. Analistas sublinham, no entanto, que esta vaga é mais pragmática e menos ideológica que a do início do milénio.
Tem sido assim nas últimas décadas: com maior ou menor influência dos vários países que a compõem e salvo algumas excepções, a América Latina parece continuar a mover-se, enquanto bloco, entre propostas políticas conservadoras e progressistas. Com a vitória de Lula da Silva nas presidenciais brasileiras, no domingo, confirma-se a entrada de mais um peso-pesado regional no clube dos Estados que viraram recentemente à esquerda.
Das últimas 11 eleições presidenciais realizadas na América do Sul, seis foram vencidas por candidatos de esquerda.
E, à excepção do Uruguai (Luis Lacalle Pou, 2019) e do Equador (Guillermo Lasso, 2021), que elegeram recentemente chefes de Estado conservadores, essas vitórias da esquerda tiveram lugar nos últimos três anos – com Alberto Fernández, na Argentina (2019); Luis Arce, na Bolívia (2020); Pedro Castillo, no Peru (2021); Gabriel Boric, no Chile (2021); e Gustavo Petro, na Colômbia (2022).
O triunfo de Lula sobre Jair Bolsonaro – um símbolo da direita ultraconservadora nos costumes e neoliberal na economia que, nos últimos anos, inspirou vários políticos e governos da região latino-americana – tem outro significado: a partir de Janeiro de 2023, quando o candidato do Partido dos Trabalhadores tomar posse, as cinco maiores economias da América Latina estarão nas mãos de Governos progressistas.
Para além do Brasil, da Argentina, do Chile e da Colômbia, na América do Sul, o grupo também inclui o México, na América do Norte, governado desde 2018 por Andrés Manuel López Obrador. O Presidente mexicano foi, aliás, um dos primeiros líderes latino-americanos a dar os parabéns a Lula da Silva. “Ganhou Lula, bendito seja o povo do Brasil. Haverá igualdade e humanismo”, escreveu nas redes sociais.
Esta nova onda progressista na América Latina tem, no entanto, origens, repercussões, significados e protagonistas bastante diferentes das anteriores derivas ideológicas regionais, apontam os analistas.
Nomeadamente em comparação com a chamada “onda rosa” do início do milénio, iniciada em 1999 com o radical Hugo Chávez, e que teve como outras figuras, para além do próprio Lula, Dilma Roussef (Brasil), Evo Morales (Bolívia), Cristina Kirchner (Argentina), Michelle Bachelet (Chile), Rafael Correa (Equador) ou José “Pepe” Mujica (Uruguai).
“[Nessa altura] houve uma vaga muito optimista de Governos de esquerda que tentaram reduzir a pobreza e que tentaram lidar com as desigualdades. As condições económicas também eram muito melhores”, diz à AFP o cientista político brasileiro Guilherme Casarões, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.
“Os Governos de esquerda que existem hoje na América Latina são muito diferentes entre si. Existem Governos autoritários na Nicarágua e na Venezuela; um [Governo] populista de esquerda no México; e Governos relativamente frágeis no Chile, na Colômbia e na Argentina”, elenca.
Em declarações à BBC News Brasil, Steve Ellner, professor norte-americano que deu aulas na Universidade do Oriente, na Venezuela, e editor da revista académica Latin American Perspective, não tem, ainda assim, dúvidas de que esta nova fase é “definitivamente uma nova onda”, ainda que “bem diferente da primeira”.
Para além de sublinhar a actual “situação económica muito precária” na região, diz que a “ausência de um Chávez” é uma das principais alterações. “Chávez foi um actor-chave, e a sua radicalização teve um efeito de cascata em toda a região. Esta segunda onda é muito mais moderada”, afirma.
“Não se trata de os latino-americanos se terem tornado mais esquerdistas. Não me parece que haja dados que possam comprovar isso”, acrescenta, por outro lado, Michael Shifter, do think tank norte-americano Inter-American Dialogue.
À AFP, Shifter diz que acredita que esta mobilização em redor de candidatos progressistas é uma resposta normal aos efeitos da covid-19 na economia e ao aumento da pobreza dos países em causa.
“Trata-se de uma tendência de rejeição, mais do que qualquer outra coisa; [são] pessoas em busca de uma alternativa. Isto acaba por acontecer num período na América Latina em que muitos dos Governos que estão a ser rejeitados são de direita ou de centro-direita”, considera.
Andrés Malamud, investigador argentino do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, encontra um interessante ponto de contacto entre as várias eleições que contribuíram para as transformações políticas dos últimos tempos na América Latina.
Olhando para os resultados das votações presidenciais realizadas entre 2018 e 2022 no Paraguai, na Colômbia, no Brasil, no Uruguai, na Argentina, na Bolívia, no Equador, no Peru e no Chile, realça que em 11 eleições destas eleições, dez serviram para os respectivos eleitorados darem a vitória aos candidatos na oposição.
“Mais do que a ideologia” escreveu Malamud no Twitter, “manda a saturação.”