Bolsonaro isolou-se e deixou o bolsonarismo órfão

Aliados do Presidente indicaram que pretendem respeitar o resultado eleitoral e trabalhar como oposição ao futuro Governo. Mas a tarefa será árdua.

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Bolsonaro visto a sair do Palácio da Alvorada na manhã desta segunda-feira ADRIANO MACHADO / Reuters

“Cadê o Bolsonaro?” Essa era uma das perguntas mais escutadas e partilhadas nas redes sociais no dia seguinte às eleições presidenciais que ditaram a derrota do actual Presidente. Depois de nada ter dito na noite eleitoral, quebrando uma tradição presente em qualquer democracia, Bolsonaro manteve-se em silêncio quando passaram quase 24 horas após terem sido conhecidos os resultados. Ao mesmo tempo, aliados importantes manifestaram respeito pelo escrutínio. A vida continua, também para aquilo que passou a ser o bolsonarismo.

Depois de meses a fio em que Bolsonaro e muitos dos seus apoiantes não se coibiram de sugerir que as eleições poderiam ser alvo de fraude e que qualquer resultado que não a reeleição do capitão reformado seria rebatido, era com uma elevada expectativa que se esperavam as primeiras declarações do ainda Presidente após a confirmação da vitória de Lula da Silva. Depois de votar no Rio de Janeiro, Bolsonaro tinha rumado a Brasília, para o Palácio da Alvorada, a residência presidencial, onde esteve a acompanhar o escrutínio com o filho e senador Flávio Bolsonaro.

Nada disse. As últimas publicações nas redes sociais do Presidente são do início do dia das eleições, com a publicação de uma passagem bíblica a servir como apelo ao voto. Apenas Flávio Bolsonaro, a meio da tarde de segunda-feira, quebrou o silêncio com uma mensagem sem qualquer ameaça velada à normalidade democrática, prometendo apenas “erguer a cabeça”.

Na segunda-feira de manhã, Bolsonaro abandonou discretamente o Palácio da Alvorada para entrar num carro que o conduziu até ao Palácio do Planalto, a poucos quilómetros. Remeteu-se uma vez mais ao silêncio e apenas algumas fotografias tiradas de fugida mostraram a figura do Presidente pela primeira vez após a derrota. Ao fim do dia, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, dizia que Bolsonaro iria falar entre segunda e terça-feira e que não iria contestar o resultado eleitoral.

Ao que tudo indica, Bolsonaro acreditava até ao último momento que a reeleição era possível, mesmo depois da passagem de Lula da Silva para a frente da contabilização ao início da noite. “Bolsonaro esconde-se num mundo imaginário, de fantasias, e nega a realidade: fez isso na pandemia e na crise”, diz ao PÚBLICO o politólogo Sérgio Abranches.

Sem declarações de Bolsonaro, coube a aliados relevantes que foram eleitos para vários cargos funcionarem como porta-vozes da derrota. A senadora eleita Damares Alves, uma das ex-ministras mais influentes do Governo, disse que Bolsonaro “deixará a Presidência da República em Janeiro de cabeça erguida, com a certeza do dever cumprido e amado por milhões de brasileiros”.

O ex-ministro do Ambiente e deputado federal eleito por São Paulo, Ricardo Salles, deixou um apelo à “pacificação de um país literalmente dividido ao meio”. “É hora de serenidade”, acrescentou. A deputada federal Carla Zambelli, que no dia das eleições perseguiu armada um homem na rua em São Paulo, disse que pretende ser “a maior oposição que Lula jamais imaginou ter”.

Os posicionamentos públicos destes e outros representantes do bolsonarismo indicam que o potencial apoio a um movimento de ruptura institucional é reduzido, mesmo entre os aliados de Bolsonaro. O objectivo, ao que tudo indicia, é fazer do bolsonarismo uma força de oposição ao futuro Governo de Lula da Silva.

É incerto se isso será viável. “Bolsonaro não vai ter instrumentos para liderar [um movimento de oposição], nem recursos para continuar em campanha pelo país”, diz Abranches. Quando abandonar o poder, a partir de 1 de Janeiro de 2023, Bolsonaro irá perder o foro privilegiado, o que significa que passa a poder ser julgado pela justiça comum, e sobre si pendem vários casos, decorrentes da CPI da pandemia, do inquérito à propagação de informações falsas e da investigação à interferência na Polícia Federal.

O politólogo também não acredita que os parlamentares agora eleitos sob a bandeira do bolsonarismo sejam capazes de formar uma frente numerosa e coesa para desempenhar o papel da oposição. “Na falta de uma liderança substituta, o bolsonarismo vai formar bolsas de preconceito e violência na sociedade”, prevê Abranches, deixando ainda um aviso: “Há esse caldo e, se surgir uma nova liderança de extrema-direita que tenha a capacidade de mobilizar, penso que há uns 10 ou 15% da sociedade que embarcam de novo num projecto desses.”

Notícia actualizada às 20h11 com informações dadas pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria.

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