A lei do mais forte

O projeto de lei do PS sobre a reparação de acidentes de trabalho dos desportistas profissionais mantém como prioridade os interesses dos clubes.

O projeto de lei n.º 348/XV, do PS, visa alterar o regime da reparação de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais, pelos piores motivos e com atropelo do direito constitucional à justa reparação em caso de acidente de trabalho.

No caso do desporto profissional, tal reparação consta de um regime específico assente na noção de que a carreira de desportista é curta e de desgaste rápido.

Essencialmente, a diferença entre este regime e o regime geral da reparação de acidentes de trabalho, está, em primeiro lugar, no estabelecimento de tetos indemnizatórios nas situações de morte, incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) e incapacidade parcial permanente (IPP). E, em segundo lugar, numa ficção legal de que a carreira de todos os desportistas profissionais termina aos 35 anos, cessando, a partir de tal idade, por exemplo, o direito à pensão por IPATH.

O estabelecimento de tetos indemnizatórios na ordem dos 20.000 €/ano e 140.000 €/ano, até aos 35 anos, para as situações de IPP e IPATH, respetivamente, não tem qualquer acolhimento na Constituição, inexistindo qualquer razão (constitucionalmente válida) para não se considerar o nível de rendimento do trabalhador até ao termo da sua carreira, no cálculo das prestações a que tem direito por acidente de trabalho (naturalmente, a partir de tal momento, justifica-se um plafonamento ou redução de tais prestações porque o rendimento passará a ser outro).

Por outro lado, o fim da carreira desportiva aos 35 anos é uma ficção desajustada face a uma cada vez maior longevidade das carreiras dos desportistas profissionais e à existência de inúmeros desportos com praticantes de idades superiores a 40 anos. De facto, para além do próprio futebol (Gianluigi Buffon e Pepe são dois exemplos num universo vasto de atletas cujas carreiras excederam largamente os 35 anos), pense-se nos casos do atletismo, ciclismo, golfe e equitação. Ora, um desportista profissional de 35 anos de idade, com dois anos de contrato pela frente, que sofra um acidente que lhe ponha termo à carreira, não tem direito, nos termos da lei atual, às prestações por IPATH, o que é uma absurda violação do seu direito constitucional à reparação.

Por outro lado, são diversas as profissões de desgaste rápido e com elevados rendimentos anuais que são abrangidas pelo regime geral de reparação de acidentes de trabalho, sem qualquer limitação de idade nem imposição de tetos máximos indemnizatórios. Pelo que é flagrante a discriminação de que são vítimas os desportistas profissionais.

Desde o início, este regime específico de reparação visou apenas conter o risco de elevadas indemnizações e os inerentes custos com seguros de acidente de trabalho, com benefício para seguradoras e clubes de futebol profissional e correspondente prejuízo não apenas para os futebolistas com salários elevados, mas, também, para aqueles que, nos escalões mais baixos, recebem rendimentos muito inferiores, e para todos os restantes desportistas profissionais, de todas as outras modalidades.

Seria assim de esperar uma revisão do atual regime vigente, aproximando os tetos indemnizatórios à realidade dos salários praticados e reajustando a norma que prevê o fim da carreira profissional aos 35 anos, mantendo, eventualmente, essa presunção mas admitindo prova em contrário (em Espanha, por exemplo, com vista ao exercício do seu direito à reparação e independentemente da sua idade, o desportista profissional pode fazer prova de que a sua carreira não tinha terminado quando sofreu o acidente).

Contudo, este projeto de lei assume, uma vez mais, como prioridade, os interesses dos clubes: para estes poderem continuar a pagar altos salários, o legislador vem baixar o risco das seguradoras e o custo dos contratos de seguro de acidente de trabalho, à custa do direito do trabalhador à efetiva e justa reparação.

Este objetivo de contenção de custos é, de resto, expressamente admitido no preâmbulo do projeto de lei: o legislador admite assim que a nova redação de uma lei que visa aplicar-se a todos os praticantes de desporto profissional, é, afinal, feita à medida de um desporto – o futebol – e para salvaguarda dos interesses financeiros de algumas sociedades anónimas desportivas, acima dos direitos de todos os trabalhadores lesados.

Foto
Apesar de muitas vezes significarem o fim de uma carreira, as lesões desportivas raramente geram uma incapacidade superior a 5% Nelson Garrido

Em concreto, a solução de contenção de custos agora proposta passa por limitar o direito à reparação aos casos de incapacidade parcial permanente igual ou superior a 5%.

Ora, as lesões desportivas, apesar de muitas vezes significarem o fim de uma carreira profissional, raramente geram uma incapacidade superior a 5%: as roturas de ligamento e “tibiotársicas” figuram no patamar de sequelas menores da Tabela Nacional de Incapacidades (vocacionada para sequelas como amputações, tetraplegia, lesões cerebrais, etc).

Pelo que tal proposta de limitação levará a que a esmagadora maioria dos casos deixe de ser objeto de reparação, esvaziando-se de conteúdo real o direito dos praticantes desportivos profissionais à reparação em caso de acidente laboral.

O legislador deve ser mais comedido na defesa dos interesses dos poderosos, respeitando a Constituição, protegendo os desportistas profissionais e o desporto em geral, para tanto devendo escutar as federações, as associações e sindicatos de atletas profissionais, juristas e os especialistas em medicina desportiva. Não nos parece que o tenha feito.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar