ONU: países que assinaram o Acordo de Paris “estão a procrastinar”

Relatório das Nações Unidas diz que a “única saída” é uma acção climática com reformas drásticas em vários sectores. A UNEP avalia o desempenho dos países que assinaram o Acordo de Paris.

Foto
A crise climática torna eventos extremos climáticos mais fortes e frequentes - como as cheias que devastam agora a Nigéria Reuters/TEMILADE ADELAJA

A janela de tempo para agir contra a crise climática “está a fechar-se” — e a “única saída” para o nosso planeta é, em contra-relógio, “transformar profundamente” a forma como a nossa sociedade funciona. Esta é a principal mensagem de um relatório das Nações Unidas, divulgado nesta quinta-feira, que pormenoriza as mudanças drásticas que temos de pôr em marcha nos sectores da electricidade, indústria, construção, alimentação, do transporte e das finanças.

“Uma abordagem passo a passo não é mais uma opção. Precisamos de uma transformação em todo o sistema. Este relatório diz-nos como fazer essa transformação”, afirma Inger Andersen, directora executiva da agência das Nações Unidas para o ambiente (UNEP), no Emissions Gap Report 2022, um relatório publicado anualmente pela entidade.

A UNEP avalia, há 13 anos, o desempenho dos diversos países envolvidos no Acordo de Paris, cujo objectivo comum é reduzir as emissões de gases de efeito estufa. O relatório é um retrato do caminho que percorremos até agora e do que falta fazer (e em qual ritmo) para chegarmos ao destino menos insuportável para a humanidade: manter o aumento da temperatura global bem abaixo dos 2º Celsius, preferencialmente à volta dos 1,5º Celsius.

Um ano desperdiçado

Este ano, os 166 países envolvidos neste compromisso comum não ficaram bem na fotografia. O comunicado de imprensa fala mesmo “num ano desperdiçado”, um resultado que já nem é uma surpresa, uma vez que tem sido mais ou menos esta a conclusão das edições anteriores. A diferença é que, antes, dispúnhamos de mais tempo.

Acompanhe a COP27 no Azul

A Cimeira do Clima das Nações Unidas é o ponto mais alto da diplomacia em torno das alterações climáticas, onde os países discutem como travar as emissões de gases com efeito de estufa que causam o aquecimento global. Este ano é no Egipto, de 6 a 18 de Novembro. Acompanhe aqui a Cimeira do Clima. 

O relatório da UNEP “mostra que as nações estão a procrastinar”, escreve Andersen no documento. “Tivemos a nossa oportunidade de fazer mudanças incrementais, mas esse tempo passou. Somente uma transformação radical das economias e sociedades pode salvar-nos de um desastre climático em aceleração”, acrescenta a directora executiva.

“Na década em que era necessária uma grande acção climática... avançámos ridiculamente pouco. Vemos uma diferença mínima, é assustador”, diz ao PÚBLICO Bárbara Maurício, gestora de políticas do clima da associação ambientalista Zero, num comentário ao relatório divulgado nesta quinta-feira.

O documento compara as chamadas “contribuições nacionalmente determinadas” (NDC, na sigla inglesa) com as medidas necessárias para garantir os compromissos do Acordo de Paris. As NDC consistem no compromisso voluntário de cada um dos 166 países envolvidos para reduzir a emissão de gases, ou seja, fazendo a sua parte para que o Acordo de Paris não se transforme numa mera declaração de intenções.

Apesar de todos os países envolvidos terem prometido tornar as suas contribuições mais ambiciosas, e de algumas nações terem mesmo actualizado as suas promessas climáticas, a UNEP considera que o progresso feito até aqui foi “extremamente inadequado”.

“As NDC apresentadas neste ano reduzem em apenas 0,5 gigatoneladas as emissões de gases de efeito estufa, [o que representa] menos de 1% das emissões globais projectadas em 2030”, refere a nota de imprensa.

Neste ritmo tão lento de redução de emissões, o planeta caminha em direcção a um aumento global da temperatura muito acima da meta do Acordo de Paris (bem menos de 2º Celsius, de preferência 1,5º Celsius). Estima-se que, consoante o cenário desenhado, o termómetro global possa subir entre 2,4º e 2,8º Celsius até ao fim deste século. Esta conclusão coincide com as linhas gerais apresentadas, na quarta-feira, num outro relatório elaborado pela agência das Nações Unidas para o clima.

“No melhor cenário possível, a implantação de todas as NDC incondicionais somada aos compromissos de emissões líquidas zero apontariam para um aumento de 1,8º Celsius. Contudo, este cenário não é confiável, uma vez que há discrepâncias entre as emissões actuais, as metas de curto prazo das NDC e as metas de longo prazo de emissões líquidas zero”, afirma Inger Andersen.

Apesar das mensagens preocupantes contidas no relatório, assim como de alguns puxões de orelha diplomáticos, o documento aponta para soluções. Inger Andersen fala em “esperança” e “acção” enquanto ainda há uma “janela aberta”. Para tal, será necessária uma transformação socioeconómica profunda nos seguintes sectores:

  • Electricidade, indústria e transporte: as reformas para que estes sectores possam “zerar” as emissões líquidas de gases de efeito estufa “já estão em andamento”, segundo o relatório, mas precisam de avançar ainda mais rapidamente. Dos três sectores, o do abastecimento eléctrico está “mais avançado”. O custo da electricidade gerada a partir de fontes renováveis está muito mais baixo, por exemplo. Contudo, a UNEP recorda que são necessárias medidas para que a transição energética seja “justa” e que o acesso à energia limpa seja “universal”.
  • Construção: o relatório sublinha que as tecnologias disponíveis hoje para tornar os edifícios mais amigos do ambiente devem ser postas em prática. Contudo, estas transformações não podem ser feitas através do investimento em novas infra-estruturas com uso intensivo de combustíveis fósseis. Será necessário avançar no desenvolvimento de tecnologias de emissões zero e aplicá-las no sector. “Este é um sector crítico para Portugal, sofremos profundamente de pobreza energética”, afirmou ao PÚBLICO Bárbara Maurício.
  • Alimentação: este sector exige mudanças comportamentais da população, incluindo hábitos alimentares e redução dos desperdícios. O relatório sublinha ainda a importância de melhorarmos a produção de alimentos nas áreas de cultivo, descarbonizarmos a cadeia de abastecimento de comida e protegermos ecossistemas naturais. Reformas fiscais e dos subsídios no sector da agricultura também deveriam ser consideradas.
  • Finanças: a UNEP faz o elogio de uma transformação global que abra caminho para “uma economia de baixo carbono”. Para reformar o sector financeiro, são recomendadas abordagens como a mobilização dos bancos centrais e a criação de mercados de tecnologia de baixo carbono.

“É uma tarefa hercúlea transformar os nossos sistemas em apenas oito anos? Sim. Conseguiremos reduzir tão drasticamente a emissão de gases de efeito de estufa nesse período? Talvez não. Mas temos de tentar. Cada fracção de grau Celsius importa para as comunidades vulneráveis, as espécies, os ecossistemas e para todos nós”, conclui Inger Andersen.