A escassez de recursos hídricos na região sul da Península Ibérica está a multiplicar os episódios que ensombram as relações bilaterais entre Portugal e Espanha, contrariando o Acordo de Albufeira. A Junta Autónoma de Andaluzia (JAA) acaba de anunciar que vai reforçar a captação de água para a região espanhola de Huelva a partir do sistema de Boca-Chança, a jusante de Alqueva, sem informar Portugal da decisão que tomou.
Em complemento deste projecto, o Ministério da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico (Miteco) anunciou, através de comunicado, ter aprovado a realização de obras de alargamento do túnel de San Silvestre. Através desta infra-estrutura será enviado um caudal de água, calculado em 20 metros cúbicos por segundo, para garantir o abastecimento a “cerca de 200 mil pessoas, às culturas regadas, às indústrias do pólo químico, ao sector turístico de Huelva” e ainda “facilitar a recuperação do aquífero do Parque Nacional de Doñana”, onde se localiza uma das mais importantes zonas húmidas da Europa. A intensificação do regadio de culturas intensivas, sobretudo de frutos vermelhos, acabou por secar esta área protegida. A obra vai custar 73,5 milhões de euros.
O Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC) garantiu ao PÚBLICO que “a captação de Boca-Chança para funcionamento regular não está autorizada”. A decisão foi tomada sem que Portugal tivesse sido informado nesse sentido, contrariando assim o que está definido na Convenção de Albufeira.
Mesmo assim, a Junta de Andaluzia aprovou um investimento de 2,8 milhões de euros para aumentar a capacidade de bombagem daquele sistema de captação instalado no início dos anos 90, a poucos metros da confluência da ribeira do Chança com o rio Guadiana e junto à linha de fronteira entre os países ibéricos.
Esta infra-estrutura hidráulica tem actualmente capacidade para bombear 63 hectómetros cúbicos de água”, um volume considerado insuficiente para “mitigar a seca” que a região de Huelva está a enfrentar. A solução tomada passa por “adicionar 12hm³ por ano até atingir os 75hm³ estabelecidos no plano de emergência da bacia”, salienta a informação da Junta de Andaluzia.
Uma seca persistente
A comunidade andaluza registou nove anos consecutivos com chuvas abaixo da média, com apenas uma excepção em 2017/2018. No caso de Huelva, a província já suportou quatro anos meteorológicos secos ou muito secos e não tem uma estação chuvosa há uma década. Mas, apesar da escassez de recursos hídricos, assiste-se ao aumento das áreas de regadio nesta região do Sul de Espanha.
José Pedro Salema, presidente do conselho de administração da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva (EDIA) referiu ao PÚBLICO que a captação de água feita pelos espanhóis no Boca-Chança “é ilegal”. Contudo, as autoridades espanholas “enviam à EDIA uma relação com os volumes de água que retiram ilegalmente” do caudal ecológico que a EDIA envia “para o Guadiana internacional” a partir do açude de Pedrógão, assinala. É neste troço que os espanhóis fazem a captação.
Globalmente, prossegue Pedro Salema, “as condições do caudal ecológico foram absolutamente cumpridas” por Portugal no ano hidrológico 2021/2022, que terminou no dia 30 de Setembro. O volume de água debitado por Alqueva, e pelas ribeiras de Limas, Carreira e Oeiras, neste período e com destino ao último troço do Guadiana, entre a aldeia do Pomarão/Mértola e Vila Real de Santo António, superou os 215 milhões de metros cúbicos. A verificação destas condições é feita diariamente, com os dados do sistema Alqueva-Pedrógão, e semanalmente com a emissão de informação específica para a EDP, “com vista ao ajuste do regime de exploração das centrais hidroeléctricas às exigências do regime de caudais”, acrescenta o presidente da EDIA.
Os caudais e volumes calculados para a secção do Pomarão têm por base o acordo aprovado entre Portugal e Espanha na XXI reunião plenária da CADC (Comissão para a Aplicação e o Desenvolvimento da Convenção de Albufeira), realizada em Madrid no dia 25 de Outubro de 2018.
Contencioso antigo
A captação de água a partir do sistema de Boca-Chança alimenta um contencioso há mais de duas décadas. E tarda o consenso entre os países ibéricos. A acta da XXI reunião plenária da CADC faz o ponto da situação em 2018, quando Portugal referiu que “será importante incluir neste processo a avaliação da captação de Boca-Chança, atendendo a que é uma captação condicionada no âmbito da CADC. Ambos os países concordam em “tentar fechar esta questão antes da XXII reunião plenária da CADC”. No entanto, quatro anos depois o impasse mantém-se.
Francisco Palma, presidente da Associação de Agricultores do Baixo Alentejo (AABA), recordou ao PÚBLICO que a água disponibilizada por Alqueva “é um recurso que tem um significado e uma importância enorme para o desenvolvimento económico e social do Alentejo” e acusa o Estado português de se ter “demitido da sua função de vigiar” as infracções cometidas por Espanha. “É preciso defender os recursos que são portugueses, que devem estar ao serviço da região e que não estão a ser defendidos, nem preservados”, disse. Essa defesa deve ser feita seja na ribeira do Chança, seja na margem esquerda do Guadiana entre os rios Caia e Cuncos, onde se encontram cerca de 40 captações de água que é consumida pelos agricultores espanhóis, sem que a EDIA veja aplicado o tarifário que os agricultores portugueses têm de pagar pela água que consomem.
Esta situação anómala também foi analisada na XXI reunião plenária da CADC. Portugal comunicou que “estava a terminar” um relatório com informação pormenorizada de cada uma das captações que seria enviado à Confederação Hidrográfica do Guadiana, entidade que faz a gestão da bacia deste rio em território espanhol, adiantando que “na sua maioria apresenta situações irregulares'’.
Questionada pela delegação portuguesa sobre as captações de agricultores espanhóis na margem esquerda do Guadiana entre os rios Caia e Cuncos, a sua congénere espanhola informou apenas que “ia proceder à extinção de várias captações”.
Na resposta que deu ao PÚBLICO, o MAAC refere que “está neste momento em curso o processo de actualização do inventário das captações da margem esquerda do Guadiana, no troço entre a confluência do Caia e do Cuncos com o Guadiana, inventário esse elaborado conjuntamente em 2001 e actualizado em 2009, estando, neste contexto, o assunto sobre o pagamento da água a ser equacionado”.
Roubo de água
“Não é compreensível esta situação”, critica o presidente da EDIA, frisando que estarão a ser retirados da albufeira do Alqueva entre os rios Caia e Cuncos “cerca de 40hm³” sem que tenha lugar o pagamento deste elevado volume de água. Uma exploração de fruta instalada nas proximidades do castelo de Juromenha, no concelho do Alandroal, paga a água que retira da albufeira de Alqueva. “E a cerca de 200 metros em frente [, no território que faz parte de Olivença,] “os agricultores espanhóis captam directamente da albufeira sem que nós tenhamos qualquer controlo sobre a água que é utilizada e não é paga [desde 2002.]”
“Os roubos de água da albufeira continuam”, observa o presidente da AABA, realçando um pormenor que raramente é referido: “Temos mais costa interior com os rios internacionais do que a costa marítima. Só Alqueva estende-se ao longo de mais de 100 quilómetros, mas o Estado português não controla nada.”
Recorde-se que, durante as negociações com o Governo espanhol para acordar a construção da barragem do Alqueva, o Estado português viu salvaguardados os seus direitos sobre o território que ficaria submerso pelas águas da albufeira e, consequentemente, a sua exploração. Neste sentido, foi assinado, a 29 de Maio de 1968, um convénio entre Portugal e Espanha que estabelece no segundo parágrafo do artigo 6.º o seguinte: “A utilização de todo o troço do rio Guadiana entre os pontos de confluência do mesmo com os rios Caia e Cuncos está reservada a Portugal, incluindo as correspondentes afluentes do troço.”