Golfinhos no Tejo podem ser “embaixadores” para conseguirmos um estuário mais saudável
ANP/WWF usou as visitas dos golfinhos ao estuário do Tejo como pretexto para estudar este “capital natural”, que é de uma importância ambiental considerável — e que, se não tivermos cuidado, podemos ajudar a ferir.
O Observatório Golfinhos no Tejo (OGT) está a trabalhar desde Março deste ano. É na torre de controlo do tráfego marítimo da Administração do Porto de Lisboa (APL) que, munidos de binóculos e telescópios, voluntários com formação em observação de cetáceos monitorizam o estuário do Tejo, tentando ver se nas suas águas conseguem encontrar golfinhos. Um relatório publicado esta segunda-feira pela ANP/WWF, que é responsável pelo OGT em parceria com a APL e o pólo que o Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (Mare) tem no Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA), revela que foram observados sobretudo golfinhos-comuns (mas também alguns golfinhos-roazes) em 37% de todas as horas de observação desde Março, que são já mais de 560.
O relatório “Golfinhos no Tejo, por um estuário mais saudável”, que foi apresentado esta segunda de manhã na Biblioteca de Alcântara, em Lisboa, é, de resto, mais sobre o estuário do que sobre os golfinhos que o visitam. “De certo modo, estamos a ‘usar’ os golfinhos como embaixadores do mundo marinho”, explica ao PÚBLICO Ana Henriques, técnica de oceanos e pescas da ANP/WWF.
“O estuário do Tejo é um património valioso para os portugueses. E por vezes não o valorizamos, de tão habituados que estamos a viver na sua envolvência”, acrescenta Ana Henriques. “Este é um capital natural que tem de ser preservado e não pode ser ferido pela actividade humana. Estamos a usar o interesse que os golfinhos geram para chamar a atenção para este capital natural.”
A poluição “presa”
Um “capital natural” que estaria em condições bastante precárias na década de 1960, de quando, segundo Ana Henriques, datam os primeiros registos mais completos sobre o estuário do Tejo e a saúde dos seus ecossistemas marinhos. “Nessa altura, havia nas margens do Tejo indústrias de pesticidas que libertavam poluentes para o estuário”, contextualiza a bióloga.
Alguns metais pesados acabaram por ficar acumulados nos sedimentos”, continua, referindo que as dragagens são, nos dias de hoje, uma ameaça considerável. “Se nós revolvemos o sedimento que está na base do estuário, corremos o risco de libertar os contaminantes que estão presos. Ou seja: ainda há um equilíbrio muito delicado entre a qualidade da água e esta permanente ameaça ambiental”, assinala.
O relatório afirma que a qualidade da água que compõe o estuário do Tejo tem vindo a melhorar nas últimas décadas, graças a factores que incluem, por exemplo, a “entrada em funcionamento” ou o “melhoramento” de várias estações de tratamento de águas residuais (ETAR) na Área Metropolitana de Lisboa, mas também salienta que isso em parte só é verdade porque, há 50 a 60 anos, o cenário era bastante mau. “As condições melhoraram, mas ainda há muito a fazer”, afirma Rita Sá, coordenadora de oceanos e pescas da ANP/WWF.
A responsável diz que a organização não-governamental (ONG) recomenda a criação de uma “comissão de acompanhamento” do estuário do Tejo. A ANP/WWF quer que, juntos, municípios, empresas, instituições académicas e cidadãos se envolvam na conservação e no restauro da reserva natural, definindo acções de mitigação e um plano concreto de protecção ambiental. “Um estuário desta dimensão, com tanta gente à volta, necessita de um trabalho conjunto”, acredita Rita Sá.
O secretário de Estado da Conservação da Natureza e das Florestas, João Paulo Catarino — que assistiu à apresentação do relatório —, considerou que a criação de uma “comissão de acompanhamento” do estuário é “uma excelente ideia”, confirmando que o plano se adequa à “estratégia do Governo para as áreas protegidas e para a valorização dos espelhos de água”.
João Paulo Catarino defendeu que essa comissão “deve envolver todos” aqueles que estejam ligados ao estuário, nomeadamente as autarquias, que, disse, “tanto têm contribuído para a melhoria da qualidade das águas”.
Governo não quer limitar tráfego marítimo
Além da questão dos contaminantes, outro problema que compromete o estuário do Tejo prende-se com a actividade portuária. “O porto de Lisboa é o principal terminal de transporte marítimo em Portugal e um dos mais movimentados”, diz o relatório a ANP/WWF. Não só o tráfego de embarcações destinadas ao transporte de passageiros é muito intenso, “transportando diariamente milhares de pessoas”, como existem ainda várias empresas “dedicadas a actividades marítimo-turísticas diversas, como passeios de observação da natureza e das cidades, eventos, pesca lúdica e, mais recentemente, passeios para observação de golfinhos no estuário do Tejo”.
Por um lado, o ruído das muitas embarcações exerce pressão sobre a vida marinha — incluindo os golfinhos, que, tendo no seu sistema auditivo “um dos seus mecanismos sensoriais mais importantes”, só fazem visitas mais prolongadas a sítios com uma boa paisagem acústica. Por outro, há o problema das espécies exóticas, que, resume Ana Henriques, “vêm nas águas de lastro” e conseguem facilmente ocupar o lugar das espécies “locais”. “O estuário do Tejo é, a nível nacional, aquele em que se conhece um maior número de espécies exóticas e/ou invasoras”, lê-se no relatório.
Questionado sobre se o Governo tem planos para reduzir o elevado tráfego marítimo no estuário do Tejo, João Paulo Catarino foi peremptório: “Não está previsto limitar o tráfego marítimo no estuário.”
Estuário do Tejo, uma maternidade para muitas espécies
A ANP/WWF realizou este relatório, que foi financiado pela Carlsberg e que contou ainda com o apoio da Fundação Oceano Azul e de dois pólos do Mare — o do ISPA e o da Universidade de Lisboa —, por sentir que os estudos científicos que ao longo dos anos tiveram o estuário do Tejo como objecto de estudo foram, nas palavras de Rita Sá, “pontuais e dispersos”.
A ONG cruzou dados históricos de diferentes fontes para analisar as alterações ambientais ocorridas no ecossistema ao longo do tempo — e juntou à parte teórica a parte prática da observação dos golfinhos. “Os golfinhos são predadores de topo, pelo que desempenham um papel muito importante de regulação do ecossistema. As suas visitas ao estuário indicam que ele reúne as condições ecológicas que são favoráveis à sua ocorrência. É em parte por isso que temos de estudar o estuário: para perceber que condições ecológicas são essas e o que temos de fazer para manter o habitat regulado”, explica Rita Sá ao PÚBLICO.
Ana Henriques diz que o Observatório Golfinhos no Tejo necessita de mais tempo no terreno — ou, neste caso, na torre de controlo do tráfego marítimo da APL — para ter mais do que apenas números e algumas possíveis conclusões. “Ainda só temos seis meses de observação. A megafauna tem uma particularidade: só observamos os animais se eles decidirem aparecer. E depois há uma outra questão: precisamos de estar lá o ano todo para ver se há alguma variação sazonal — isto é, se estes golfinhos têm alguma preferência entre o Inverno ou o Verão”, esclarece.
Já se saberá, contudo, que a temperatura e a salinidade são dois factores importantes. O relatório indica ser “expectável” que os golfinhos não cheguem até às áreas “mais a montante” do estuário, após a ponte Vasco da Gama, onde os valores de salinidade são “mais baixos”. É ainda de se prever que os avistamentos sejam “mais frequentes em períodos com menor pluviosidade e temperaturas mais elevadas”.
O estuário do Tejo — que não tem uma população residente de golfinhos, ao contrário do estuário do Sado, onde, segundo o relatório, vivem 27 golfinhos-roazes — é uma zona de maternidade para muitas espécies de peixe. É ainda, diz Ana Henriques, um grande “exportador de alimento para as zonas costeiras”. “Exporta zooplâncton, que serve de alimento a outros peixes, incluindo peixes comercialmente importantes, como robalos, corvinas e linguados.”
O estuário é relevante também porque nele há pradarias marinhas, cuja presença no Tejo foi, de acordo com o relatório, “novamente confirmada” em 2009. Há “possíveis referências à existência de ervas marinhas no Tejo no século XIX”, mas este seria “um habitat inexistente no estuário desde há muito tempo”. Ora, as pradarias marinhas são importantíssimas porque, além de constituírem o abrigo de muitas espécies porventura mais vulneráveis, são grandes sequestradoras de carbono.
“Costumamos dizer que os estuários são as florestas tropicais dos oceanos”, comenta Ana Henriques. “Não só funcionam como viveiros de peixes, como são ecossistemas muito produtivos. Daí a necessidade de os estudarmos.”