Ondas de choque da mobilização militar ainda abalam a Rússia
O anúncio de novos estados de alerta vem somar nervosismo a uma situação que já era de nervos desde há um mês. Mas isto, por si só, “não provoca uma desestabilização forte do regime de Vladimir Putin”.
A meio desta semana, Vladimir Putin impôs a lei marcial nas quatro regiões ilegalmente anexadas na Ucrânia, mas decidiu também apertar as regras de segurança dentro da Rússia. Consoante o nível de alerta em que cada região se encontra, o decreto do Presidente russo permite reforçar as medidas que garantam a ordem pública e impor restrições ao trânsito e ao movimento de pessoas.
Putin afirmou que a decisão se deve à ameaça de ataques ucranianos em solo nacional. “Os serviços especiais ucranianos organizaram a explosão da ponte na Crimeia e travámos ataques terroristas noutras regiões da Rússia, incluindo em zonas com grande concentração de pessoas e contra infra-estruturas de transportes e energia”, disse o líder russo.
Caberá aos governadores regionais definir exactamente que regras vão adoptar. Alguns deles, assim como os autarcas das duas maiores cidades, vieram rapidamente garantir que não prevêem restringir deslocações nem tomar decisões que ponham em causa o dia-a-dia dos seus cidadãos.
A estas garantias não será alheio o estado de nervosismo que se apoderou de muitos russos desde que o Kremlin anunciou a “mobilização parcial” de tropa para a Ucrânia, há um mês. Milhares de homens fugiram, sobretudo para os países vizinhos. Outros, como relata o The New York Times numa reportagem sobre Moscovo, em que a presença masculina diminuiu visivelmente, escondem-se dos olhares públicos por temerem ser chamados a prestar serviço militar. E muito outros, centenas de milhares, estão a caminho da Ucrânia ou já na frente de batalha.
“Independentemente do que digam nas sondagens e quer apoiem ou não a guerra imperial de Putin, é óbvio que a maioria dos homens russos não quer sequer estar perto da frente”, escreveu na Foreign Policy o jornalista russo Alexei Kovalev, que chefia a secção de investigação no jornal independente Meduza.
A notícia da “mobilização parcial” começou por ser recebida com choque. “Na sociedade russa, há uma verdadeira crise de confiança nas autoridades públicas e nas Forças Armadas”, afirmou Tatiana Kasouéva-Jean, que dirige os estudos sobre a Rússia no Instituto Francês das Relações Internacionais (IFRI). “As pessoas pensavam que o Exército estava num estado excelente porque viram o sucesso da anexação da Crimeia e porque lhes mostraram imagens muito boas da operação militar na Síria. E subitamente descobrem a verdade, ao mesmo tempo que eles próprios são atirados para a guerra sem preparação e sem equipamento.”
Ao choque seguiu-se a confusão e as denúncias de más condições. “Para centenas de milhares de famílias russas, a guerra não é só uma ameaça directa à sua sobrevivência, porque quem garante o sustento é atirado para a batalha sem consideração pelos dependentes, mas também um fardo económico maciço”, analisa Kovalev, que afirma existirem grupos no Telegram “com centenas de membros”, em que “mulheres e noivas partilham dicas sobre onde comprar armaduras e capacetes baratos”.
A isto junta-se a “inundação de vídeos e áudios de soldados russos que se queixam das condições em que estão e de todas as peripécias que lhes acontecem ainda antes de chegarem à guerra”, disse Kasouéva-Jean.
Uma certeza, muitas incertezas
Como afirmou ao PÚBLICO o académico russo Ilya Yablokov há umas semanas, também a investigadora franco-russa se mostrou convicta, num debate realizado esta semana em Paris, que está aberta “uma brecha no contrato social que liga Putin à sociedade russa e que consiste em ‘eu dou-vos prosperidade em troca de vocês não participarem na vida política’”.
Mas isto, por si só, “não provoca uma desestabilização forte do regime de Vladimir Putin”, disse Kasouéva-Jean, nem é garantia de tarefa facilitada para os ucranianos.
Depois dos avanços rápidos de Setembro na região de Kharkiv, recuperando em poucos dias o que levara vários meses à Rússia a conquistar, as Forças Armadas ucranianas estão a fazer progressos mais lentos no Sul e até a ceder algum território no Donbass.
Ao mesmo tempo, a Rússia lançou uma campanha de ataques com mísseis e drones a infra-estruturas energéticas que está a provocar graves problemas à população civil. “O sector energético está a trabalhar 24 horas por dia”, disse à BBC o ministro ucraniano da Energia, Herman Halushchenko, garantindo que “está a tentar fazer reparações o mais depressa possível”.
Mas assumiu igualmente que os danos são “dramáticos” e retomou um pedido que a Ucrânia fez logo no início da guerra: “Precisamos de fechar os céus a 100%.” Tal como em Março, a NATO não parece disposta a isso, mas alguns países decidiram enviar mais defesas antiaéreas para Kiev.
Antes que chegue o Inverno e com ele os terrenos lamacentos impróprios ao avanço territorial dos soldados, as próximas semanas poderão ser decisivas para definir o curso futuro da guerra. “Existe uma dissonância entre as expectativas das pessoas em relação ao fim dos combates e o fim real da guerra. Os combates podem esmorecer, mas isso não significa que a guerra propriamente dita acaba”, avisa no The New York Times o analista militar Michael Kofman.
Ou como diz o militar na reserva Michel Goya, que também participou no debate do IFRI: “Ainda teremos guerra em 2023, isso é uma certeza. Mas que forma é que ela vai ter, isso já não vos sei dizer.”