Mais de 250 revistas científicas exigem “justiça climática” para África

Num editorial comum, revistas de saúde apelam aos líderes mundiais, que estarão reunidos no Egipto em Novembro para a COP27, para que garantam uma doação anual de 100 mil milhões de dólares a países vulneráveis. A ideia é compensar a África por danos climáticos.

FILE PHOTO: Clouds gather but produce no rain as cracks are seen in the dried up municipal dam in drought-stricken Graaff-Reinet, South Africa, November 14, 2019. Picture taken November 14, 2019. REUTERS/Mike Hutchings/File Photo NARCH/NARCH30
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Seca da África do Sul em 2019 REUTERS/Mike Hutchings
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Paisagem devastada após a passagem do ciclone Idai no Zimbabwe, em 2019 REUTERS/Philimon Bulawayo

Mais de 250 revistas científicas, todas dedicadas à saúde, publicam esta quarta-feira um editorial comum exigindo que os decisores políticos compensem os países africanos pela crise climática. O documento reivindica “uma acção urgente” para que apoios financeiros concretos sejam garantidos durante a Cimeira das Nações Unidas sobre o Clima (COP27), que decorre no Egipto de 6 a 18 de Novembro.

“Nunca tantas publicações da especialidade se uniram para fazer uma reivindicação comum, o que reflecte a severidade da emergência climática que o mundo agora enfrenta”, refere a Lancet numa nota de imprensa.

O editorial é publicado simultaneamente não só em 50 revistas científicas africanas, mas também em publicações internacionais de referência na área da saúde pública, como a Lancet, BMJ, JAMA e WHO Bulletin.

“África tem sofrido desproporcionalmente os efeitos da crise climática, embora pouco tenha feito para causar essa mesma crise. A crise climática tem tido um impacte tanto nas determinantes sociais como ambientais da saúde em toda a África, provocando efeitos devastadores na saúde”, lê-se no editorial assinado por 16 editores de revistas biomédicas africanas. As determinantes sociais e ambientais são as circunstâncias que influenciam a saúde e o bem-estar humano.

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Episódios de seca hidrológica em África subsaariana triplicaram entre os anos 70 e a segunda década deste século REUTERS/Thomas Mukoya

Ao longo de duas páginas, o editorial conjunto refere, num tom assertivo, que está na hora de “finalmente” as nações mais ricas apoiarem a África e outros países vulneráveis a eventos extremos. A ideia é que aqueles que pouco contribuíram com emissões, desde a Revolução Industrial até agora, possam ser compensados por efeitos da crise climática ocorridos “no passado, no presente e no futuro”.

“Em África, nós já estamos a ver os efeitos devastadores das alterações climáticas na saúde das populações. A necessidade de fortalecer os cuidados de saúde primários, orientados para servir a comunidade, é agora maior do que nunca”, defende o co-autor Bob Mash, editor da revista científica African Journal of Primary Health Care and Family Medicine, citado no comunicado.

O editorial reclama um financiamento climático anual de 100 mil milhões de dólares (montante semelhante em euros). Este apoio financeiro seria transferido “através de doações e não de empréstimos” e definido a curto prazo, ou seja, antes de 2025. Além disso, há a expectativa da criação de um fundo adicional para perdas e danos.

“Um mecanismo de financiamento para perdas e danos deve ser criado agora, facultando recursos adicionais que vão além daqueles destinados à mitigação e adaptação. Isto tem de ir além dos falhanços da COP26, quando a sugestão deste mecanismo foi relegada a um [mero] ‘diálogo’”, lê-se no editorial.

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Criança transportada dentro de um frigorífico, em 2019, durante as inundações resultantes da passagem do ciclone Idai em Moçambique REUTERS/Siphiwe Sibeko

Ciclones, cheias e secas

Inundações, ciclones e longos períodos de escassez de água estão entre os exemplos de eventos climáticos extremos citados no documento. Episódios de seca hidrológica na África subsariana triplicaram entre os anos 70 e a segunda década deste século, por exemplo. A Agência das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) estima que a desnutrição aumentou quase 50% na região desde 2012.

Cheias colossais na África central e ocidental provocaram múltiplas mortes e obrigaram as populações a migrar, deixando para trás o gado e as terras cultivadas. Inundações também facilitam a propagação de insectos que são vectores de doenças como a malária e a dengue. Sem abrigo e sem meios de subsistência, os problemas de saúde começam a bater mais forte à porta das famílias africanas.

“Está na hora de a comunidade global reconhecer que a crise climática, ainda que afecte de forma desproporcional o nosso continente, é um problema planetário. Temos de começar a agir agora, e começar por onde está a doer mais, ou seja, em África. Se falharmos, esta crise tornar-se-á um problema de todos muito em breve”, afirma o co-autor Lukoye Atwoli, director da revista East African Medical Journal​​, citado na nota de imprensa.

Revistas científicas posicionam-se

A crise climática já havia motivado um outro editorial conjunto em 2021, quando 231 publicações científicas sublinhavam os efeitos catastróficos da mudança do clima na saúde planetária. Nessa ocasião, a comunidade científica frisou que limitar o aumento da temperatura a 1,5 graus Celsius era uma questão de saúde pública. Agora, um número ainda maior de revistas da especialidade reivindica justiça ambiental para África.

O relatório deste ano do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) antevê um futuro pouco auspicioso para a vida na Terra se não formos capazes de travar a subida dos termómetros. Os efeitos da crise climática, refere o IPCC, estão directamente ligados a problemas de saúde física e mental. E daí que o novo editorial refira a importância de tornar a rede de cuidados de saúde primários em África mais robusta e resiliente, incluindo apoio psicológico e psicossocial.

“Já não estamos num período em que a mudança climática é apenas uma possibilidade teórica. Ela já é uma experiência muito real para pessoas em muitos países do mundo. Já existe um aumento significativo no debate em torno das consequências do clima para a saúde mental”, afirma ao PÚBLICO o psiquiatra Julian Eaton, que não esteve envolvido na elaboração do editorial. Especializado em saúde mental global, Eaton é professor na Escola de Saúde Pública e Medicina Tropical de Londres, no Reino Unido, e trabalhou durante 14 anos na Nigéria e no Togo, África ocidental.