Reimaginar a habitação acessível em Lordelo do Ouro: “As casas não têm de ser postas em caixas”
Neste episódio de No País dos Arquitectos, falamos sobre o projecto de habitação acessível em Lordelo do Ouro, no Porto, e a importância do acesso à habitação na emancipação dos mais jovens. O podcast No País dos Arquitectos é um dos parceiros da Rede PÚBLICO. Segue-o no Spotify, Apple Podcasts ou outras plataformas.
No 43.º episódio do podcast No País dos Arquitectos, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitectura Building Pictures, conversa com os arquitectos Maria Souto de Moura, Luís Caleiro, Francisco Pinto e Francisco Pina sobre o projecto de habitação acessível em Lordelo do Ouro, no Porto.
Para garantir que todas as famílias, sem excepção, tenham acesso a uma casa digna, vários países da União Europeia têm criado programas de habitação acessível. Porém ainda existem diferenças significativas no acesso a essa mesma habitação. Existem países da União Europeia onde a habitação social representa 5% do parque habitacional total. Em Portugal apenas 2% se destina à habitação social. Para contrariar esta realidade, a Câmara Municipal do Porto tem lançado concursos públicos que promovem a habitação acessível.
O objectivo destes concursos é semelhante aos programas destinados à habitação social: garantir o acesso à habitação digna a preços compatíveis com os rendimentos do agregado. Porém, a crescente dificuldade da classe média no acesso à habitação introduziu uma falha no mercado habitacional: “a determinado momento, na cidade do Porto, por causa do boom do turismo, a classe média baixa, ou seja, os jovens casais chegaram a um ponto em que os seus ordenados não permitiam aceder ao mercado de arrendamento, mas também não estavam elegíveis aos apoios da habitação social”, contextualiza Maria Souto de Moura.
Para colmatar essa lacuna, em Abril de 2020, a Câmara do Porto lançou três concursos para o projecto de habitação acessível em Lordelo do Ouro.
O primeiro dos dois concursos – ganho pelos quatro jovens arquitectos – está destinado à construção de três edifícios de habitação colectiva, referente aos edifícios A, B e C. O segundo concurso diz respeito à construção do lote de edifícios D e E: “as áreas de intervenção têm morfologias completamente diferentes. Enquanto o A, o B e o C têm uma morfologia que ainda ‘agarra’ as casas contínuas da habitação típica do Porto, o D e o E já não têm tanto essa relação com a cidade existente e era uma área completamente diferente, por isso talvez fizesse sentido serem dois projectos diferentes”, revela Luís Caleiro.
A área de intervenção localiza-se na União de Freguesias de Lordelo do Ouro e Massarelos, na parte ocidental da cidade. Trata-se de uma área que, no processo de desenvolvimento da cidade, teve um carácter periférico. Francisco Pinto recorda que “entre 1956 e 1966” foi feito um “Plano de Melhoramentos para a cidade do Porto” e, nesse âmbito, foram construídos bairros sociais: “actualmente estes bairros foram completamente engolidos pela cidade, mas muitos deles tinham estruturas viárias e a própria morfologia estava feita de forma a que a cidade lhes passasse um bocadinho ao lado. Penso que aqui, pelo menos, a intenção da Câmara – e acho que isso está bem presente na proposta de referência que foi apresentada para o concurso – era misturá-los numa nova malha urbana que fizesse com que eles não fossem excluídos, mas que estivessem integrados no conjunto a uma escala maior”, esclarece Francisco Pinto.
“As casas não têm de ser postas em caixas”
Próximo de vários bairros (Condominhas, Pinheiro Torres, Pasteleira e Lordelo), este projecto procura, por um lado, contrariar situações indesejáveis de segregação espacial e, por outro, existe “a tentativa de trazer também estes bairros sociais para a cidade”, com o objectivo de promover a diversidade, pensando na sua integração e não na sua exclusão.
“Há aqui a possibilidade de conseguir coser, de alguma forma, estas duas realidades que são próximas, mas que não têm estado muito juntas. Embora os bairros estejam numa zona privilegiada da cidade, sempre foram tratados de forma diferente em termos urbanos. Aqui a tentativa é: mais do que só dar habitação, procurar que a cidade também contamine o bairro de uma forma positiva”, fundamenta Francisco Pina.
Por outras palavras, Maria Souto de Moura transmite a mesma ideia: “eu acho que a pergunta para um arquitecto tem de ser sempre a mesma: eu viveria ali? Neste caso, sim, viveríamos sem dúvida.”
Durante a entrevista, Francisco Pinto observa como a própria cidade, por vezes, cria rótulos que provocam sentimentos de exclusão a quem habita nos bairros e como este projecto vem romper com esse estigma. “Qual é a diferença entre a habitação social e a habitação acessível? Nós próprios tivemos essa dúvida, no decorrer do projecto, quando estávamos a fazer a proposta para o concurso. A verdade é que não queríamos estigmatizar ou que a imagem do edifício estigmatizasse o seu fim. Obviamente que o termo habitação para rendas acessíveis é relativamente recente e as pessoas, por vezes, comentam: ‘ah, mas aquilo não parece nada habitação social’. Mas também não é, e o objectivo era que não parecesse. As casas não têm de ser postas em caixas”.
Abrir-se à cidade
Francisco Pina menciona que “um dos grandes pontos fortes do concurso” é a “redistribuição viária, na zona de Lordelo”, que passará a “permitir uma permeabilidade maior nesse tecido que se une de forma mais clara”. Maria Souto de Moura reflecte sobre essa mesma ideia e verifica que a pandemia da covid-19 mudou a forma como as pessoas vivem as cidades, por isso esta reestruturação urbana criará uma hierarquia de percursos viários e pedonais.
“Nós não estamos só a projectar três edifícios, estamos a projectar um espaço da cidade. Eu acho que isso é muito importante referir na nossa proposta. Não são três objectos dispersos. São três objectos que estão em relação tanto entre eles, como com a cidade que está próxima e a questão da transparência também é importante no nosso projecto porque ela também está presente nos próprios fogos. Começámos este concurso, em plena pandemia, quando estávamos todos fechados em casa. Esse factor ajudou muito a pensar naquilo que é o modo de viver. A questão, por exemplo, de que todos os fogos têm um espaço exterior adjacente foi uma prioridade para nós porque, na verdade, é quando se tem de ficar fechado em casa, durante uma semana, que se percebe que o poder estender o espaço da casa ao exterior é fundamental”, sublinha.
O arquitecto Luís Caleiro corrobora esta premissa ao afirmar: “no fundo, fizemos aqueles edifícios onde nós gostávamos de viver tendo em conta o contexto que estávamos a viver”.
Esta abertura à cidade reflecte-se na própria organização das equipas e na forma como as várias especialidades interagem entre si: “a Câmara não pretendia entregar esta ‘empreitada’ a um só escritório, a um só grupo de pessoas, mas queria conseguir ter alguma diversidade”, explica Francisco Pina.
Para os quatro jovens arquitectos é essa mesma diversidade e colaboração, entre os vários intervenientes, que torna os três projectos uma experiência enriquecedora: “este é um dos maiores concursos públicos abertos que houve na cidade do Porto, em muitos anos, e foi um concurso muito participado. Isso acarreta responsabilidade e põe um peso muito grande do nosso lado. Por outro lado, dá-nos uma esperança, enquanto jovens arquitectos porque, de repente, é possível fazer projectos grandes e, anonimamente, ganhar um concurso com pessoas com muita mais experiência do que nós e com escritórios já muito estabelecidos. Também nos faz acreditar positivamente na arquitectura, no trabalho do arquitecto e nas nossas ideias, enquanto jovens arquitectos. Para além disso, aprendemos imenso nesta parte da colaboração com as outras equipas dos outros dois concursos, com a Câmara e entre nós”, realça Francisco Pinto.
Maria Souto de Moura, Luís Caleiro, Francisco Pinto e Francisco Pina não partilham o mesmo atelier, mas acreditam que são precisamente essas dinâmicas de cooperação que fortalecem o projecto, que se encontra agora em apreciação na Câmara Municipal do Porto. Ainda não existe uma data prevista para a sua concretização, mas Francisco Pina adianta que o projecto de arquitectura “pode vir a estar concluído para o ano”.
No País dos Arquitectos é um dos podcasts da Rede PÚBLICO. Produzido pela Building Pictures, criada com a missão de aproximar as pessoas da arquitectura, é um território onde as conversas de arquitectura são uma oportunidade para conhecer os arquitectos, os projectos e as histórias por detrás da arquitectura portuguesa de referência.
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