Os seres humanos utilizam recursos naturais desde sempre. A designação de algumas fases da pré-história humana está mesmo relacionada com os materiais que eram usados no fabrico de artefactos: as idades da pedra, do cobre, do bronze e do ferro. A época histórica que actualmente atravessamos já tem sido designada por idade do silício, numa alusão ao intenso uso deste composto no fabrico de equipamentos electrónicos. Mas a verdade é que, de alguma forma, pode dizer-se que estamos ainda na idade da pedra, uma vez que continuamos dependentes dos recursos minerais e energéticos para fabricar os bens de que necessitamos com o objectivo de providenciar bem-estar e prosperidade social.
Em Outubro, celebrou-se, pela primeira vez, o Dia Internacional da Geodiversidade, aprovado em 2021 pela 41ª Conferência Geral da UNESCO. Esta data será comemorada todos os anos, sempre a 6 de Outubro, com a finalidade de sensibilizar a sociedade para o importante papel que a geodiversidade tem como garante de sobrevivência e bem-estar, tanto dos seres humanos como de toda a biodiversidade.
A geodiversidade corresponde à variedade de elementos não vivos da natureza, nomeadamente minerais, rochas, fósseis, solos, formas de relevo e paisagens, assim como processos activos de que são exemplos o vulcanismo e a erosão. Este é o primeiro de cinco artigos que pretendem assinalar a importância da geodiversidade.
Desde a década de 1970 que designamos os bens e benefícios provindos da natureza por “serviços de ecossistemas”. Esta designação é hoje habitualmente usada para referir apenas os serviços obtidos a partir da biodiversidade, deixando de lado a componente não viva dos ecossistemas que é, em larga medida, assegurada pela geodiversidade. Talvez um termo que se prestaria a um menor afunilamento do conceito subjacente fosse o de “serviços da natureza”, como aliás chegou a ser proposto na referida década.
Os bens e benefícios que obtemos da natureza – tanto da sua componente viva como não viva – são, principalmente, de quatro tipos: regulação, suporte, aprovisionamento e serviço cultural. Vejamos então como os elementos que compõem a geodiversidade contribuem para cada um destes tipos de serviços.
Contributo para os serviços de regulação
No planeta Terra decorrem, desde há pelo menos 4300 milhões de anos (idade mais antiga determinada até hoje em cristais de zircão da Austrália), inúmeros processos que interagem e se autorregulam, criando sistemas que proporcionam condições indispensáveis à existência de vida, incluindo da espécie humana. A geodiversidade participa e desempenha um papel crucial em muitos destes sistemas, como é o caso do ciclo da água.
De toda a água doce que existe no planeta, cerca de 69% encontra-se sob a forma de gelo nas calotes polares e nos glaciares, 30% circula em aquíferos (rochas que, em profundidade, armazenam água nos seus poros e fracturas) e apenas 1% se encontra à superfície em cursos de água e lagos. Os aquíferos são assim um dos principais componentes do ciclo da água, constituindo um elemento fundamental para o abastecimento humano e a sobrevivência de outros seres vivos, com destaque para os aquíferos em regiões áridas. A circulação da água nos aquíferos e nos solos tem ainda um efeito de filtragem, contribuindo para garantir a qualidade da água.
Um outro exemplo do papel da geodiversidade na regulação dos ecossistemas relaciona-se com o controle natural de inundações. As dunas litorais são acumulações de areia que evitam a entrada do mar sobre as zonas continentais. De igual modo, as planícies de inundação de rios e os estuários contribuem para que, em períodos em que o nível dos rios sobe devido à ocorrência de precipitação elevada a montante, a água se disperse por uma maior superfície, diminuindo deste modo a sua velocidade de escoamento e contribuindo para reduzir eventuais danos e perdas sobre outros sistemas naturais e infra-estruturas construídas pelos seres humanos.
Contributo para os serviços de suporte
Ficamos maravilhados com a diversidade de fauna e flora no planeta, mas, frequentemente, esquecemo-nos de que os ecossistemas resultam de uma ligação estreita entre a geodiversidade e os seres vivos que nela habitam. Esta relação, no entanto, foi há muito reconhecida: Alexander von Humboldt (1769–1859), por exemplo, foi um dos primeiros a notar a interdependência entre vegetação e altitude.
A altitude de um local relaciona-se com o tipo e a idade das rochas aí existentes, bem como com os efeitos da tectónica de placas que, ao longo da história da Terra, levaram a sucessivos levantamentos de cadeias montanhosas (orogenias), intercalados com fases erosivas que arrasam as montanhas formadas.
A presença de grifos nas arribas de Miranda do Douro ou nas vertentes do Tejo, nas Portas de Ródão, deve-se ao facto de estas aves nidificarem em escarpas rochosas constituídas por materiais mais resistentes à erosão, como é o caso de granitos e quartzitos, respectivamente. Em grutas do Parque Natural das Serras de Aires e Candeeiros existem espécies únicas que só se desenvolvem em habitats muito específicos, condicionados pela geodiversidade, num processo de interdependência ainda não totalmente conhecido. A geodiversidade é, assim, o suporte fundamental para a vida de grande parte da biodiversidade terrestre.
No caso da espécie humana, também a geodiversidade se revela imprescindível na construção das infra-estruturas características da sociedade actual, apesar de esta circunstância passar, em geral, despercebida. São rochas com os níveis de resistência adequados que permitem a edificação de habitações, redes viárias e ferroviárias, barragens e portos em superfícies suficientemente estáveis e duradouras. É também nas rochas que armazenamos gás natural – e, no futuro, possivelmente, hidrogénio –, que enterramos os resíduos radioactivos produzidos nas centrais nucleares e construímos aterros onde depositamos toneladas de resíduos domésticos e industriais.
Contributo para os serviços de aprovisionamento
São inúmeros os exemplos de como a geodiversidade oferece materiais essenciais aos ecossistemas e aos seres humanos, em particular. Desde logo, disponibilizando uma série de produtos utilizados na nossa alimentação, como o sal (nada mais do que os vestígios de minerais que se foram dissolvendo a partir das rochas ao longo de milhões de anos) ou a água. Relativamente às plantas, as rochas e os minerais fornecem nutrientes que são incorporados na biomassa produzida – caso do azoto, potássio, cálcio, ferro, e outros – e que são posteriormente consumidos pelos seres vivos. Já a maioria dos materiais de construção – cimento, tijolos, aço, vidro – são fabricados a partir de rochas e minerais, assim como o são todas as ligas metálicas, muitos produtos farmacêuticos, fertilizantes e componentes destinados à indústria electrónica.
E a sociedade actual não seria possível sem a utilização de recursos minerais energéticos: quer consideremos a combustão de hidrocarbonetos (petróleo, gás natural, carvão) – que desejamos que seja, um dia, pretérita e desnecessária –, quer avancemos na transição energética com a utilização de energias renováveis como a água, o sol ou o vento, em barragens, painéis e aerogeradores, o certo é que, por enquanto, ambas as situações só são possíveis recorrendo à exploração de rochas e minerais.
Contributo para os serviços culturais
Por fim, a geodiversidade disponibiliza ainda um conjunto de benefícios relacionados com aspectos culturais da nossa sociedade. Refira-se, a título de exemplo, a explicação dada pela cultura popular às pegadas de dinossáurios do Monumento Natural da Pedra da Mua: estas representariam as marcas deixadas nas camadas calcárias do Cabo Espichel pelas patas de uma mula que transportava a Virgem Maria ao topo do promontório. Esta lenda acabou mesmo por servir de inspiração à pintura dos painéis de azulejos existentes na Ermida da Memória, datada do século XV.
Alguns relevos rochosos são usados para actividades de lazer, como a escalada em escarpas idênticas à da Meadinha, no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Há também formações geológicas que possuem um valor estético tal que se convertem em atractivos turísticos, como as colunas de basalto no Pico da Ana Ferreira, na ilha de Porto Santo, as inúmeras caldeiras vulcânicas nas ilhas dos Açores ou a recortada costa algarvia da Ponta da Piedade, em Lagos.
A construção de monumentos históricos e habitações com valor patrimonial recorre habitualmente à rocha que existe em maior abundância no seu entorno. A geodiversidade local está assim directamente associada à identidade cultural dos territórios, como é bem representativa a marca “Aldeias de Xisto”.
Finalmente, uma referência ao papel da geodiversidade no ensino e na investigação em geociências: é devido à comunidade geocientífica que conhecemos as características e impactos dos vários tipos de erupções vulcânicas, que reconhecemos os ritmos de subida e descida do nível do mar registados nas rochas, que sabemos o modo como os glaciares moldam as paisagens, como os oceanos interagem com os continentes, como se formam as montanhas, ou quando surgiu a vida na Terra e como esta evoluiu. Todo este conhecimento é crucial para que a humanidade consiga dar resposta a alguns dos maiores desafios que tem hoje pela frente, como é o caso da crise ecológica relacionada, em grande parte, com a mudança climática e a perda de biodiversidade.
Agradecimentos a Luís Lopes e Teresa Salomé Mota pela leitura e revisão crítica do texto
Geólogo da Universidade do Minho e membro da Associação Portuguesa de Geólogos