Doze dias a navegar nas águas de Cascais, Mafra e Sintra à procura dos seus segredos

Expedição científica ocorrida nos primeiros 12 dias de Outubro procurou fazer um primeiro retrato da biodiversidade de uma zona ainda pouco estudada. Estivemos a bordo do Santa Maria Manuela, o navio que foi a base das operações.

Répteis
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Nuno Vasco Rodrigues/Fundação Oceano Azul
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Depois de ver se está tudo bem com as câmaras que estão presas a uma estrutura metálica, Friederike mostra o polegar a Alberto, Jorge, Paulo e Pedro, que estão com ela na traineira Praia da Ribeira, de Pedro. Após confirmarem que estão nas coordenadas certas, os cinco ajudam-se uns aos outros na tarefa de pôr dentro de água a pesada estrutura, à qual estão atados vários cabos. Ela desce uns 100 metros até atingir o fundo do mar.

Além de suportar câmaras, o dispositivo suporta também um tubo com cavalas mortas. É o isco, mas Alberto, Friederike, Jorge, Paulo e Pedro não querem pescar nada, embora estejam num barco de pesca. Querem, sim, chamar a atenção das espécies que ali vivem. Se a estratégia resultar, a câmara passará cerca de uma hora a filmá-las, antes de a estrutura ser recolhida. Mais tarde, será possível analisar-se as gravações e caracterizar-se a biodiversidade.

Passam poucos minutos das 15h numa tarde soalheira de terça-feira (11 de Outubro). Estamos no Cabo da Roca (Sintra), o ponto mais a oeste da Europa continental. O Praia da Ribeira está bastante afastado da costa, porque está a colaborar com a Fundação Oceano Azul, numa expedição científica cuja missão é fazer um primeiro retrato da biodiversidade que se esconde nas águas de três municípios do distrito de Lisboa: Cascais, Mafra e Sintra.​

A expedição, que durou 12 dias, juntou diferentes instituições e centros de investigação — o Centro de Ciências do Mar (CCMar) da Universidade do Algarve, o Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (Cesam) da Universidade de Aveiro, o Instituto Hidrográfico (IH), o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), pólos do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (Mare) e a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) — e terminou esta quarta-feira (12 de Outubro). Decorreu porque as águas em questão ainda nunca tinham sido alvo de um estudo muito exaustivo. E também porque as três autarquias envolvidas — que, juntamente com a Fundação Oceano Azul, lançaram as bases da iniciativa — pretendem que seja ali criada uma área marinha protegida de interesse comunitário (AMPIC).

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Parte da equipa de investigadores a bordo do Santa Maria Manuela Nuno Vasco Rodrigues/Fundação Oceano Azul

Ora, “para proteger há que conhecer”, conforme ouvimos várias vezes durante os dois dias que passámos a bordo do Santa Maria Manuela. Foi nos beliches apertados deste navio, um antigo bacalhoeiro que hoje desempenha funções mais turísticas, que dormiram os quase 60 investigadores que a expedição envolveu. Era na sua sala de refeições (um espaço que, contaram-nos, em tempos albergou “só bacalhau e sal”) que, todos os dias, eles reviam e actualizavam o plano de tarefas a executar.​

O quadro onde este plano era constantemente escrito e reescrito por Emanuel Gonçalves, administrador da Fundação Oceano Azul e coordenador científico da expedição, estava sempre cheio de observações. Esta foi uma expedição que deu aos seus participantes pouco tempo de descanso. Uma equipa teve de, diariamente, fazer mergulhos em diferentes pontos para listar as espécies encontradas e descrever os habitats. A outro conjunto de especialistas coube a tarefa de operar remotamente um veículo que, conseguindo chegar a ambientes mais profundos, deu com outro tipo de fauna.

Um terceiro grupo ficou encarregado de caracterizar as aves marinhas e os cetáceos que ocorrem em Cascais, Mafra e Sintra. Um quarto focou-se na biodiversidade da chamada “zona entremarés” — isto é, a zona do litoral que fica exposta ao ar durante a maré baixa e submerge no contexto contrário. E um quinto usou câmaras com isco para identificar espécies que o veículo operado remotamente ou os mergulhadores afugentavam.

É aqui que entram pequenos barcos como o Praia da Ribeira. Voltemos, então, ao início deste texto.​

Sobre envolver as comunidades locais

Friederike é Friederike Peiffer, investigadora do pólo que o Mare tem no Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA), em Lisboa. A alemã está a bordo do Santa Maria Manuela desde o primeiro dia da expedição — ao contrário de outros especialistas, que se juntaram apenas mais tarde, substituindo colegas numa lógica de rotatividade —, mas não tem muito tempo para desfrutar do relativo conforto do navio. Os seus dias começam cedo (antes das 6h já está acordada) e são maioritariamente passados em pequenas traineiras, que a levam até lugares longe da costa.​

Ela e Alberto Fernandes, biólogo marinho do Oceanário de Lisboa, são os principais responsáveis por pôr dentro de água as câmaras com isco – mas não estão sozinhos, tendo o apoio de vários pescadores locais. No penúltimo dia da expedição, que é o dia em que os acompanhamos, são eles Jorge Dias, Paulo Guerreiro e Pedro Teixeira, muito habituados às águas que estão a ser estudadas.

O Praia da Ribeira, que é de Pedro e que Jorge e Paulo conhecem bem (fazem parte da tripulação), sai da marina de Cascais, onde o Santa Maria Manuela está atracado, às 6h30. Hora prevista de regresso: 17h. Serão mais de dez horas a fazer um trajecto que passará por Cascais, Sintra e coordenadas que ficam já na Ericeira. E hoje o dia de trabalho até vai ser curto (Friederike está habituada a voltar ao Santa Maria Manuela só depois das 20h).​

Com cerca de 90 minutos de viagem, torna-se claro que o pequeno Praia da Ribeira é bem mais sensível ao movimento das marés do que o Santa Maria Manuela. Após sentir demasiadas oscilações, o estômago começa a dar sinal (deram-nos comprimidos para os enjoos, mas não foram muito eficazes). Paulo repara no esbranquiçar do rosto e diz-nos que, pelo sim pelo não, é melhor dormitarmos no “andar de baixo” da traineira, onde há uma “cama” rudimentar e imprópria para claustrofóbicos. Dá-nos um balde, não vá o diabo tecê-las (e o diabo tecê-las-á).

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Equipa de mergulhadores prepara-se para mais uma entrada na água Nuno Vasco Rodrigues/Fundação Oceano Azul

A viagem revela-se dura, mas, depois de relativamente recuperados, falamos com Pedro, que está contente com a expedição. Ela tem um lado muito positivo, considera, porque os investigadores “vieram pedir o contributo dos pescadores”. “Temos de saber o que está a passar-se aqui [nestas águas]. E, ao colaborarmos, conseguimos ter uma noção dos perigos. Nós temos o nosso conhecimento e os cientistas têm o deles. Penso que, em conjunto, podemos arranjar uma boa solução para esta área”, diz o pescador de 51 anos. E reforça: “Está na hora de arranjarmos soluções. Caso contrário, qualquer dia não há peixe.”

Dentro do Santa Maria Manuela, Marisa Batista, investigadora do Mare — Universidade de Lisboa, também faz referência à importância de envolver a comunidade local. “O sucesso da conservação marinha depende da integração das pessoas. Chegarmos a um sítio e dizermos ‘Vou fazer aqui uma área marinha protegida’ não só pode ter um impacto devastador do ponto de vista económico, como simplesmente não resulta. As pessoas não respeitam aquilo que não percebem”, afirma. E salienta que a criação de AMPIC só surte efeito quando os benefícios associados à conservação da natureza são bem explicados à população — e também quando, sendo impostos limites à exploração dos recursos naturais, as autoridades locais garantem formas alternativas de rendimento.​

Marisa Batista, que ajudou a planear o trabalho executado pelas duas equipas de mergulhadores (uma delas fez um levantamento de, principalmente, espécies de peixe, enquanto a outra esteve mais atenta a algas e invertebrados), diz que as águas de Cascais, Mafra e Sintra ainda não tinham sido muito estudadas, pois “esta é uma costa difícil”. “Está muito exposta, muito sujeita a um grande hidrodinamismo”, o que, para os mergulhadores, torna as condições de trabalho menos do que ideais.

Mergulhadores fotografam a biodiversidade encontrada Nuno Vasco Rodrigues/Fundação Oceano Azul
Mergulhador tira apontamentos Nuno Vasco Rodrigues/Fundação Oceano Azul
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Mergulhadores fotografam a biodiversidade encontrada Nuno Vasco Rodrigues/Fundação Oceano Azul

Felizmente, comenta, foi possível mergulhar em 11 dos 12 dias da expedição. E, embora ainda seja muito cedo para tirar grandes ilações, as suas equipas viram “bastante biodiversidade e zonas que são de interesse para a conservação”.

Carlos Moura, um dos mergulhadores, ficou particularmente impressionado com o que viu, “a grandes profundidades”, no Cabo da Roca: “recifes bem desenvolvidos de Sabellaria”, género de verme poliqueta que “faz construções de areia” que, com o tempo, “acabam por ficar mais consolidadas, como se fossem rochas que depois vão atrair outro tipo de organismos”. As espécies deste género são, portanto, “espécies construtoras de habitat”: “aumentam a biodiversidade em zonas maioritariamente arenosas”, pelo que são extremamente relevantes num contexto de conservação, explica o investigador do CCMar.​

Resultados preliminares

Esta quarta-feira de manhã, no Oceanário de Lisboa, foram apresentados alguns resultados preliminares da expedição. Os dados recolhidos ainda serão alvo de uma análise minuciosa, que resultará na elaboração de um relatório, mas os números divulgados permitem ter uma ideia do trabalho realizado.

No âmbito dos mais de 150 mergulhos científicos feitos, cobriu-se uma área de 90 mil metros quadrados e foram identificadas múltiplas espécies de peixes (cerca de 50), macroalgas (30) e invertebrados (200). Os animais mais abundantes incluíram, por exemplo, as estrelas-do-mar e os pepinos-do-mar.

As câmaras com isco gravaram 270 horas de vídeo. Tanto foram usadas câmaras que ficaram a flutuar, filmando a fauna presente na coluna de água, como câmaras que registaram ambientes mais profundos. As imagens das primeiras não são animadoras: avistaram-se pouquíssimos grandes predadores, incluindo apenas um tubarão-azul. As das segundas, por outro lado, pintam um retrato diferente: nas águas da montanha de Camões, uma zona perto do Cabo da Roca, foram encontradas florestas de kelp e jardins de corais e esponjas, bem como uma grande diversidade e abundância de peixes.​ Num cenário de protecção da biodiversidade, a montanha de Camões parece ser particularmente interessante e relevante.

No que diz respeito ao estudo de aves marinhas, foram contadas 110 pardelas-baleares. A espécie está, segundo a classificação da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla inglesa), “criticamente em perigo”.