As incríveis cidades-esponja previnem cheias, mas “não são uma panaceia”

A China está a fazer uma forte aposta nas cidades-esponjas para evitar inundações, mas há um limite absorver as águas oriundas de eventos climáticos extremos. Um artigo vem agora dizer que não basta tornar as zonas urbanas mais porosas e verdes – é preciso envolver também as pessoas.

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Shangai é um dos vários exemplos de cidades-esponja criadas na China Danys Nevozhai/DR

A China está a fazer uma forte aposta nas cidades-esponjas para evitar inundações, mas há um limite para a capacidade de absorção de fortes chuvas que, com a crise climática, tendem a ficar mais intensas. Um artigo publicado quarta-feira, na revista científica WIREs Water, argumenta que não basta tornar as zonas urbanas mais porosas e verdes – é preciso também envolver as pessoas.

As cidades-esponja constituem um modelo alternativo de concepção urbanística que recorre a soluções naturais para prevenir, ou mitigar, os efeitos adversos de chuvas intensas. São zonas urbanas com pavimentos permeáveis, edifícios com fachadas e tectos ajardinados e, por fim, muitos espaços verdes, preferencialmente interligados, com capacidade de absorver, armazenar e purificar água em lagos e reservatórios.

“Existem limites para a quantidade de precipitação uma cidade-esponja pode absorver, portanto, é improvável que sejam uma panaceia para os problemas de inundação nas zonas urbanas. Nós argumentamos que medidas que envolvam a comunidade, de baixo para cima, constituem uma parte essencial da intervenção necessária para transformar cidades-esponja em cidades com resiliência à inundação”, lê-se no artigo.

A ideia é apostar mais na porosidade e na absorção. E menos na drenagem e contenção de água fazendo uso de condutas, barreiras e diques de betão (chamados de elementos “cinzentos”). Ao introduzirmos componentes “verdes” e, assim, “imitarmos” a natureza – ou seja, deixando a água fluir, sendo absorvida lentamente –, conseguimos benefícios como o aumento da biodiversidade, a redução das ondas de calor, a oferta de espaços que melhoram a qualidade de vida da população e, claro, a prevenção de cheias colossais.

Contudo, os autores do artigo avisam: as cidades-esponja trazem inegáveis vantagens, mas não são uma solução mágica para acabar com as inundações. É preciso mais. E esse esforço adicional implica envolver as pessoas para tornar as cidades mais resilientes.

Guangtao Fu, primeiro autor do artigo, explicou ao PÚBLICO que as soluções para as cheias “devem considerar a geografia, economia, estrutura social e cultura locais”. Como as grandes cidades chinesas são compostas por condomínios fechados, faz todo sentido tirar partido destas comunidades organizadas para criar mapas e protocolos de resiliência. Entre outras medidas, as pessoas podem, por exemplo, montar um sistema de alerta e vigilância nos prédios onde vivem ou também unirem-se para um contrato conjunto numa companhia de seguros que cubra estes riscos.

“O elemento humano deve desempenhar um papel maior na construção de cidades resistentes a inundações. Embora as medidas que combinam elementos cinzentos e verdes sejam adoptadas para reduzir o risco de inundação, o elemento humano pode melhorar significativamente a resiliência às inundações quando essas medidas cinza-esverdeadas falham”, diz ao PÚBLICO Guangtao Fu, professor de Inteligência da Água na Universidade de Exeter, no Reino Unido, por e-mail.

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A cidade de Shangai, na China, dotada de espaços verdes capazes de absorver lentamente as águas pluviais Rafael Banha/DR

Ampliar o efeito esponja

A China começou a colocar a ideia das cidades-esponja em prática em 2014. Em 2020, refere o artigo, cerca de 177 mil milhões de yuan (o equivalente a cerca de 28 mil milhões de euros) foram investidos em 30 projectos-piloto escolhidos pelo Governo chinês. Agora, o país está a ampliar os planos de construção como resposta às cheias.

A aposta chinesa é descrita como um esforço “sem precedentes” no que toca à escala, se comparada a de outros países. A ambição é garantir, até 2030, que 80% das áreas urbanas sejam capazes de reter localmente 70% das águas pluviais. Para alcançar esta meta, as autoridades avançaram com a terceira fase do programa nacional das cidades-esponja, que contempla mais 20 candidatas e que deverá estar concluída até 2023. Cada uma das cidades receberá entre 109 e 172 milhões de euros do governo chinês para dotar as zonas urbanas de características esponjosas.

“Para tornar a cidade-esponja bem-sucedida, é vital combinar abordagens tanto de cima para baixo como no sentido inverso. O programa nacional adopta principalmente uma abordagem de cima para baixo para planeamento e implementação conduzida pelo Governo, mas as lições aprendidas em outros países mostram que o envolvimento da comunidade pode desempenhar um papel substancial na construção de cidades resistentes a enchentes”, acredita Guangtao Fu.

Salvar vidas em caso de cheias

O conceito de esponja também pode salvar vidas. As cheias todos os anos causam vítimas mortais – e a tendência é que os balanços sejam cada vez mais trágicos, considerando que a crise climática está a tornar os eventos extremos mais frequentes e intensos. Um relatório recente do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) refere que cerca de 700 milhões de pessoas já estão expostas a chuvas significativamente mais intensas do que nos anos 50.

No ano passado, por exemplo, a cidade chinesa de Zhengzhou registou 292 mortes e 47 pessoas desaparecidas, na sequência de chuvas torrenciais com proporções quase bíblicas. Os índices pluviométricos registaram, no dia 20 de Julho de 2021, o valor recorde de 202 milímetros de água em apenas uma hora. Zhengzhou contabilizou ainda perdas materiais que ascenderam a 65,5 mil milhões yuan (10 mil milhões de euros).

O investimento do Governo chinês é desejável, mas os autores do artigo frisam a importância da “comunicação eficaz e do envolvimento da comunidade” para que as populações possam mitigar os efeitos da crise climática. “São cruciais para reduzir os danos causados ​​pelas inundações e salvar vidas”, refere Guangtao Fu por e-mail.

“Uma história que aconteceu durante a inundação de Zhengzhou demonstra como a resiliência social pode salvar vidas em situações de emergência de inundação. Uma mulher e os dois netos ficaram presos dentro de um carro inundado por águas profundas no caminho de volta da escola. A filha usou as redes sociais para encontrar pessoas perto do local (donos de lojas e transeuntes) que pudessem prestar socorro”, acrescenta.

Dar tempo e espaço à agua

Um dos defensores mais célebres do conceito de cidade-esponja é o arquitecto Kongjian Yu, que defende que é preciso dar tempo e espaço à água para ser absorvida lentamente. Yu defende ainda que os prédios devem ser construídos para que as águas possam subir de vez em quando sem causar danos estruturais. Na óptica de Yu, a ideia de cidade-esponja permite a absorção da água durante o período das monções e, simultaneamente, a libertação deste recurso em tempos de seca hidrológica.

“A ideia das cidades-esponja é permitir o fluxo natural. Existe um sistema que actua como uma esponja, retendo a água em vez de drená-la”, explica Kongjian Yu num vídeo publicado pelo World Economic Forum. Além de ajudar a prevenir cheias, solos permeáveis favorecem o aumento de águas limpas e a diminuição da poluição. Nos dias mais quentes, a chuva acumulada nos reservatórios dos espaços verdes pode evaporar e refrescar a cidade.

“Nós precisamos entender que as infra-estruturas cinzentas [isto é, de betão] são, na verdade, assassinas daquilo que nós dependemos para [viver]”, diz Kongjian Yu, que possui um doutoramento em arquitectura na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos (EUA). Cidades como Nova Iorque, também nos EUA, e Cardife, no Reino Unido, já estão a adoptar projectos que recorrem menos a elementos cinzentos e apostam em soluções baseadas na natureza.

Notícia corrigida dia 10 de Outubro às 11h35:

O relatório do IPCC refere que 700 milhões de pessoas estão expostas a chuvas mais intensas do que nos anos 50 (e não mortes por episódios de precipitação extrema, como estava erroneamente mencionado).