Podemos continuar a ignorar o urânio português?

Com reatores de IV geração, as nossas reservas de urânio conhecidas, cerca de 6 mil toneladas, seriam, só por si, suficientes para produzir, para sempre, toda a eletricidade de que a nossa economia precisaria, se toda a energia primária que consome actualmente já tivesse sido descarbonizada.

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Central nuclear de Sizewell B em Suffolk, Reino Unido Reuters/SUZANNE PLUNKETT

Portugal consome em média cerca de 50 TWh de eletricidade, 10 por cento da qual importada, 30 por cento produzida hoje em dia sobretudo a partir do gás e 60 por cento a partir de fontes renováveis, sendo a água responsável por 40 por cento destas, ou seja, por 24 por cento da eletricidade consumida, e as restantes fontes renováveis por 36 por cento, sem contar a parte de origem renovável da eletricidade importada, de difícil contabilização.

Mas como o nosso consumo de eletricidade corresponde apenas a 25 por cento do nosso consumo total de energia, as nossas renováveis são responsáveis, por essa via, por apenas 15 por cento do nosso consumo total de energia, e especificamente as centrais elétricas eólicas, de co-geração e foto-voltaicas por apenas 9 por cento.

E mesmo depois de contabilizarmos a energia primária não elétrica que todavia também é oriunda de fontes renováveis, 11 por cento, a totalidade da energia que consumimos oriunda de fontes renováveis, mais uma vez excluindo a que é importada, não ultrapassa 26 por cento do total.

O resto da energia consumida divide-se entre 46 por cento de petróleo e derivados e 11 por cento de gás, a que há que somar 7,5 por cento correspondentes aos 30 por cento da eletricidade consumida que é produzida a partir do gás natural, para chegar aos 62,5 por cento de energia com origem fóssil que consumimos, contra apenas 26 por cento com origem renovável, sendo o resto correspondente à eletricidade importada e ao aproveitamento do calor industrial.

O que dá uma ideia da dimensão do desafio que será descarbonizar progressivamente toda a economia, posto que, só para electrificar os nossos 5,5 milhões de carros actuais, tendo em conta que os transportes foram responsáveis por 28 por cento dos gases com efeito de estufa produzidos em 2019, e no duplo pressuposto que a média anual percorrida por cada um é de 16,8 mil km e que o consumo será de 0,21 KWh/km, será preciso produzir e ou importar cerca de 20 TWh suplementares de eletricidade, e portanto instalar uma capacidade suplementar mínima ou de 12,3 Gw de energia foto-voltaica ou de 8,8 Gw de energia eólica ou de 2,9 Gw de energia nuclear.

Como a produção de eletricidade a partir de fontes renováveis é no entanto muito intermitente, vide os factores de capacidade, de 18 por cento para os painéis solares e de 25 para as eólicas, tendo havido semanas em agosto em que estas duas fontes renováveis não produziram eletricidade nenhuma, situação agravada por períodos de seca que limitaram a produção hidroeléctrica, e como o preço do gás provavelmente nunca mais voltará a ser o que era, tudo indica assim que terá chegado a altura de debater seriamente a introdução do nuclear no nosso mix energético, para garantir a componente despachável suplementar requerida pela descarbonização da economia.

Tanto mais que a Comissão Europeia (CE) anunciou no dia 31 de dezembro passado a decisão, a que nem o Parlamento Europeu nem o Conselho se opuseram, de incluir certos investimentos no nuclear e no gás na sua taxonomia das actividades ambientalmente sustentáveis, a fim de poderem também contribuir para a UE alcançar, dentro dos prazos, os seus objetivos ambiciosos em matéria de descarbonização da economia, designadamente dos transportes.

Essa decisão da CE entrará em vigor no início do próximo ano e tem estado a ser invocada num grande número de Estados-membros para ajudar a justificar a reconsideração do nuclear, tendo em vista o prolongamento da vida útil de centrais operacionais ou a reabertura de centrais entretanto fechadas antes do fim da respetiva vida útil ou a construção de centrais adicionais, vide casos da Bélgica, Bulgária, Chéquia, Croácia, Eslováquia, Eslovénia, Finlândia, França, Holanda, Lituânia, Polónia e Roménia, a que provavelmente se juntarão em breve a Suécia e a Itália.

Uma central de um único reactor de III geração com uma potência de 1,4 GWe consome cerca de 270 toneladas de urânio natural por ano, quantidade que as nossas reservas conhecidas, em jazidas espalhadas de norte a sul, todas mineráveis subterraneamente, podem fornecer durante 20 a 25 anos e que é mais que suficiente para justificar o respetivo enriquecimento em Portugal, contribuindo assim também para reforçar substancialmente a nossa autonomia estratégica num sector crítico.

Com o respaldo duma central nuclear de 1,4 GWe, a outra metade da capacidade instalada suplementar necessária para descarbonizar 5,5 milhões de carros já poderia então ser gerada com maior segurança, apesar da respetiva intermitência, pelas novas centrais de energia elétrica com origem renovável que terão que ser construídas para descarbonizar toda a economia, quer diretamente quer através da produção intermédia de hidrogénio pela eletrólise da água.

Pode-se portanto afirmar que o desafio de assegurar a neutralidade carbónica do nosso parque automóvel até 2035 é superável mesmo nas circunstâncias actuais, não só porque o nosso país tem vento e sol abundantes como também porque, ao contrário de quase todos os outros Estados-membros da UE, dispõe de reservas suficientes para enriquecer o urânio necessário à produção de metade da eletricidade de que vai precisar para esse efeito, com um investimento em torno de 10 mil milhões de euros distribuído quando muito por dez anos, entre 2025 e 2035.

E ainda porque pode a todo o momento reactivar a parceria tecnológica com o aliado americano de que usufruiu durante sessenta anos, entre 1959 e 2019, ao abrigo da qual foram formadas sucessivas levas de engenheiros nucleares, nos EUA e na Europa, nomeadamente para trabalhar nas múltiplas aplicações do reator experimental de Sacavém (RPI) e no planeamento da central que esteve prevista até meados da década de oitenta, e tem estado adiada desde então.

A mais longo prazo, entre 2035 e 2055/60, haveria tempo para expandir a nossa primeira central, construindo um ou mais reatores de IV geração, com os quais reutilizar, circularmente e por tempo indeterminado, não só os resíduos do urânio enriquecido usado na produção de eletricidade ao longo dos 20/5 anos precedentes, correspondente a uma pequeníssima percentagem das reservas totais, mas também usar todo o urânio empobrecido, sobrante do processo de enriquecimento.

Com reatores de IV geração, as nossas reservas de urânio conhecidas, cerca de 6 mil toneladas, seriam, só por si, suficientes para produzir, para sempre, toda a eletricidade de que a nossa economia precisaria se toda a energia primária que consome actualmente já tivesse sido descarbonizada.

É um desígnio estratégico com profundidade e duração de tal forma incomuns entre os temas da agenda habitual da praça pública nacional que, nas nossas condições actuais, só pode ser assumido integralmente pelo Estado.

Contudo não sem que os autores dos respetivos conceito tecnológico e roteiro institucional sejam submetidos a uma acareação pública em sede parlamentar com envolvimento do maior número possível dos cientistas portugueses com experiência comprovada neste domínio, estejam onde estiverem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico