Energia Nuclear: o travão na produção de electricidade e os planos de dez países
Os números são de uma organização que elabora um relatório anual sobre a indústria. Mostram um parque de centrais envelhecido na Europa, e uma vontade de investir em novos reactores sobretudo na Ásia... e talvez em alguns países europeus e nos EUA, graças a novos incentivos. A guerra na Ucrânia já está alterar muitos planos nesta área.
A parcela da energia nuclear na geração de electricidade em 2021 caiu para 9,8%. É a primeira vez em quatro décadas que este valor cai para menos de 10%, apesar de continuar a aumentar a quantidade de electricidade produzida no mundo, conclui o relatório O Estado da indústria Nuclear Mundial 2022, apresentado nesta quarta-feira por um grupo internacional liderado por Mycle Schneider, consultor em questões de energia. O pico da energia nuclear, quando representava 17,5% do total mundial, foi atingido em 1996. Agora, a guerra na Ucrânia promete mudar os planos de muitas nações na frente da energia nuclear.
Segundo o relatório, em 2021 o investimento total mundial no sector energético foi 69% nas energias renováveis, 23% combustíveis fósseis e 8% no nuclear. “Estes dados mostram que a energia nuclear não pode ser a base de uma transição energética, e além disso afasta investimento que deveria ser canalizado para as energias renováveis”, disse Jan Philipp Albrecht, presidente da Fundação Heinrich Böll, ligada ao Partido Os Verdes alemão.
Em meados de 2022, havia 411 reactores a funcionar em 33 países, menos quatro do que no ano anterior. No ano anterior, produziram 2653 terawatt-horas (TW.h ou um bilião de kilowatts.hora) de electricidade, o que representou um aumento de 3,9% em relação a 2020, mas ainda assim abaixo dos níveis de 2019, diz o relatório apresentado na Fundação Heinrich Böll, ligada ao Partido Os Verdes alemão, onde foi apresentado o relatório de 385 páginas.
Cinco novos reactores ficaram operacionais na primeira metade de 2022, e seis novos reactores foram ligados à rede em 2021, três dos quais na China. Pelo segundo ano seguido, a China produziu mais electricidade com origem nuclear do que França, e é também o segundo maior produtor de energia com esta origem, atrás dos Estados Unidos, diz o relatório, que usa dados da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) e outras fontes.
Alguns números não condizem com os da AIEA, nomeadamente número de reactores em funcionamento, porque há uma diferença de critério em relação ao momento em que um reactor encerra. A AIEA tem considerado ainda como activos alguns que estão há muito tempo parados, explicou Mycle Schneider, numa conferência de imprensa por Zoom.
Entre 2002 e 2021, houve 98 reactores que começaram a funcionar e 105 que encerraram. Foi na China que abriram mais reactores novos (50), sem que tivessem encerrado nenhuns. Em 2021, encerraram oito reactores, além de dois outros no Reino Unido, mas que não produziam energia desde 2018.
A 1 de Julho de 2022, havia 53 reactores novos em construção, em 15 países, o mesmo número que este relatório reportou há um ano. Desde meados de 2021, iniciou-se a construção de sete reactores, incluindo seis na China. Só quatro países – China, Índia Rússia e Coreia do Sul – estão a construir reactores em mais do que um local. É a Rússia que está a conseguir exportar mais a sua tecnologia, mas é a China que está a construir mais no seu país.
A construção de um reactor não é um processo fácil. Pelo menos dez dos 15 países que têm obras a decorrer têm atrasos de anos na construção. Estão atrasados 26 dos projectos. Para os 53 reactores em construção, passou em média 6,8 anos desde que se iniciaram as obras.
Se a China é o país que mais constrói reactores nucleares, não tem conseguido exportar a sua tecnologia. Só o Paquistão comprou seis reactores chineses. A Rússia é que domina o mercado internacional da construção de reactores – em meados de 2022 tinha 20 projectos em obra, e apenas três eram em território russo. É incerto como vão decorrer estas obras, devido às sanções internacionais aplicadas à Rússia por causa da guerra na Ucrânia. Para além da Rússia, só empresas de França e da Coreia do Sul têm conseguido contractos para a construção de reactores no estrangeiro.
Tem havido muito entusiasmo com os reactores nucleares pequenos (conhecidos pela sigla SMR), considerados por muitos como o futuro da utilização da energia nuclear. “Mas é preciso ter consciência que aquilo de que se houve falar são projectos de Power Point, que não foram construídos”, sublinhou M.V. Ramana, detentor da cadeira Simons de Desarmamento e Segurança Humana e Global na Universidade da Columbia Britânica (Canadá), autor de um capítulo do relatório dedicado às perspectivas desta tecnologia.
Há projectos em vários países, em alguns casos com forte apoio público, mas o que tem havido é muitos atrasos nos calendários para que se tornem realidade. “E é preciso ter a noção de que estes reactores pequenos serão mais caros do que os grandes, pelo menos duas vezes mais caros”, disse Ramana.
Aqui fica uma análise de alguns dos países que mais produzem electricidade com origem nuclear (cerca de dois terços do parque de reactores nucleares concentra-se em apenas dez países):
Alemanha
No fim do ano de 2022, as últimas três centrais nucleares alemãs em funcionamento deveriam encerrar, pondo ponto final ao abandono desta tecnologia, decidido após o acidente na Central de Fukushima, no Japão, em 2011. Mas a crise energética, em consequência da guerra na Ucrânia, agravada pela falta de disponibilidade das centrais francesas, que fez com que a França tenha sido um importador líquido de energia durante todo o ano, até durante o Verão, quando normalmente se torna exportador, levaram o ministro da Economia, do Partido Os Verdes, a decidir manter duas destas três centrais num estado de prontidão para que possam ser reconectadas à rede em caso de necessidade absoluta – até Abril de 2023. Mas o Partido Liberal, outro membro do Governo de coligação, querem o prolongamento seja pelo menos até 2024. Qualquer decisão de prolongar a vida das centrais exigiria mudanças legais e testes técnicos às centrais.
A electricidade produzida nas centrais nucleares alemãs em 2022 representa 5,6% do total produzido.
China
Em meados de 2022, a China tinha 55 reactores a funcionar, com uma capacidade combinada de 53 GW. As centrais nucleares geraram 383,3 TW.h em 2021, o que representou 5% da electricidade produzida na China, quase a mesma quantidade que em 2020. Houve um aumento de 11% na electricidade produzida graças ao nuclear de 2020 para 2021, mas são as energias renováveis que mais aumentaram (40%).
A China tem a frota mais jovem de centrais nucleares: 41 reactores, quase um em cada cinco, foram ligados à rede nos últimos dez anos. Em relação ao relatório anterior, foram ligadas três novas centrais nucleares à rede eléctrica, embora haja 21 outros projectos em construção.
Em Março de 2022 a Administração Nacional de Energia apresentou o plano quinquenal para a energia que estipulou o objectivo de aumentar a capacidade instalada de produção de energia nuclear para 70 GW até 2025. Mas a capacidade combinada das centrais em funcionamento e as que estão em construção e que se prevê que comecem a operar antes de 2026 é de cerca de 61 GW – por isso, o plano não deverá ser cumprido.
O plano energético estabelece como meta que em 2025 39% da energia seja gerada por outros meios que não combustíveis fósseis (em 2021 essa parte era 32,6%)
A China ambiciona ser um país exportador de tecnologia nuclear, mas até agora só construiu reactores no Paquistão (seis). Discussões de projectos com outros países, como a Argentina, Roménia ou Reino Unido não avançaram.
Coreia do Sul
Há 24 reactores em funcionamento e três em construção, e projectos de construir outros dois. Os planos para o abandono da energia nuclear delineado na administração do anterior Presidente, Moon Jae-in, sofreram uma volta atrás com a eleição, em Maio, de um Presidente conservador, Yoon Suk-yeol. A Coreia do Sul é o país da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico com a menor parcela de energia com origem em fontes renováveis
Em 2021, as centrais nucleares geraram 27,5% da electricidade produzida na Coreia do Sul.
Estados Unidos
Com 92 reactores em funcionamento em meados de 2022, os Estados Unidos têm a maior frota nuclear do mundo. Um reactor no Michigan foi encerrado este ano, após 50 anos de funcionamento.
Há dois novos reactores em construção, na central Vogtle, na Georgia, desde 2013. Com os atrasos, o custo da obra está estimado em 34 mil milhões de dólares (2,4 vezes mais do que o calculado quando foi lançado o projecto). Nos últimos 26 anos, apenas um novo reactor foi posto em funcionamento nos últimos 26 anos, o que faz do parque norte-americano de centrais, um dos mais antigos do mundo, com uma idade média de 41,6 anos. Há seis centrais que funcionam há mais de 51 anos.
As centrais nucleares norte-americanas garantiram 18,9% da energia dos EUA em 2021, segundo o Departamento de Energia – menos que os 19,7% de 2020. Mas o Congresso aprovou legislação que atribui grandes subsídios para a energia nuclear – financiando tanto como os reactores já existentes. A Administração de Joe Biden parece ter a certeza de que necessita do nuclear para cumprir os objectivos de redução das emissões com efeito de estufa.
Há financiamento público destinado a vários projectos de desenvolvimento de reactores modulares pequenos (conhecidos pela sigla em inglês SMR, e considerados uma tecnologia promissora para um futuro próximo). Até Dezembro de 2021, o Departamento de Energia investiu mais de 1200 milhões de dólares em projectos deste tipo e anunciou que durante a década seguinte poderia atribuir mais financiamentos no valor de 5500 milhões de dólares. O conceito NuScale é considerado o que está mais avançado nos EUA.
Há também várias investigações a decorrer de corrupção e fraude relativas a subsídios e projectos de novos reactores.
Finlândia
Foi ligado à rede em Março de 2022 o quinto reactor deste país nórdico, o primeiro Reactor Europeu de Água Pressurizada (EPR) a ser construído no continente. Abriu com 13 anos de atraso em relação ao previsto (quando começou a ser construído, em 2005, previa-se que pudesse abrir em 2009). No entanto, têm surgido uma série de problemas inesperados, e só em Dezembro se espera que comece a produzir electricidade regularmente.
O projecto para a construção da central de Hanhikivi, com um reactor de desenho russo e envolvimento da empresa nuclear estatal russa, Rosatom, foi cancelado em Maio, em consequência da guerra na Ucrânia.
França
A descoberta de fendas devidas à corrosão em sistemas de arrefecimento de emergência do núcleo dos quatro maiores reactores (1450 MW) em Dezembro de 2021 levou ao seu encerramento. Só isto representou a perda de 6 MW de capacidade de produção de electricidade. Mas posteriormente descobriram-se problemas semelhantes em outros reactores. O resultado é que durante grande parte de 2022 estiveram parados 32 dos 56 reactores do país, e a perspectiva do Governo francês é que possam reabrir até Fevereiro de 2023.
A EDF, a empresa de electricidade que acabou por ser renacionalizada no Verão, devido a um aumento incomportável da dívida que a levou à beira da bancarrota, estimava em meados do ano que a produção de electricidade em centrais nucleares em 2022 fosse na ordem de 280-300 TW.h, um valor que não é registado desde 1990.
Este vai ser um problema especialmente grave no Inverno, pois cerca de 30% das casas francesas são aquecidas com recurso à electricidade, diz o relatório.
Estes problemas não impediram o Presidente Emmanuel Macron de anunciar “um renascimento nuclear francês” em Fevereiro [antes das eleições presidenciais de Abril), em que prometeu a construção de seis reactores EPR2 e que seriam lançados estudos para a construção de outros oito. No entanto, esta tecnologia ainda não existe, nem ao nível mais primário de concepção, nota o relatório.
No âmbito deste programa, mil milhões de euros seriam destinados para o desenvolvimento de “reactores inovadores”, que incluíam projectos de pequenos reactores modulares.
A actual legislação francesa prevê o encerramento de uma dúzia de reactores até 2035 e a redução da share do nuclear na produção de energia para 50% (em 2020, representou 69% da electricidade produzida em França).
Índia
Com dez reactores em funcionamento, a geração de electricidade desceu ligeiramente desde 2019 e representa 3,2% da produção total. As energias renováveis têm um peso maior: em 2021 foram produzidos 43,9 TW.h de electricidade em centrais nucleares, e 171,9 por fontes renováveis (sem ser hidroelectricidade).
Há oito outros reactores em construção, incluindo quatro de fabrico russo, com atrasos e que devem sofrer o impacto das sanções internacionais contra a Rússia por causa da invasão da Ucrânia.
Japão
Em Julho de 2022, só sete dos reactores em condições de trabalhar japoneses estavam de facto a funcionar. Onze anos após o acidente nuclear na central de Fukushima, há um total de 33 reactores que ainda são designados como estando em “uso comercial”. Foram pedidas licenças de funcionamento para 25, mas apenas uma dezena começou realmente a trabalhar em algum momento.
Embora tenham sido actualizados com medidas extra de segurança que se tornaram o padrão pós-Fukushima, alguns reactores que foram autorizados a funcionar pela autoridade nuclear nacional, encontraram a oposição dos municípios em que estão localizados, enfrentando em alguns casos processos judiciais contra a sua abertura iniciados por grupos de cidadãos.
Mas a crise do gás relacionada com a guerra na Ucrânia afectou bastante o Japão, e estará a fazer mudar de opinião os japoneses em relação à energia nuclear, que teve muita oposição após a o acidente de Fukushima. Segundo um inquérito de opinião Jiji Press de 21 de Julho, 48,4% dos japoneses estão a favor de voltar a ligar os reactores nucleares se se confirmarem as condições de segurança para operarem, e 27,9% estão contra em qualquer circunstância.
Reino Unido
Em meados de 2022, o Reino Unido tinha em funcionamento 11 reactores, dois em construção (Hinkley Point C, com grandes atrasos na obra que arrastam a data prevista para estar pronto par 2026, e aumento de custos, para pelo menos 30 mil milhões de euros) e um projecto com dois reactores na fase de tomada de decisão final sobre o investimento (Sizewell C).
Em 2021, as centrais nucleares britânicas geraram 42 TW.h de electricidade – o valor vem a descer há seis anos seguidos –, o que representa 14,8% do total.
Encerraram quatro reactores em dois locais (Hunterston e Dungeness) recentemente, em 2021 e 2022. O Reino Unido fechou 34 reactores no total – é o segundo país em que houve mais encerramentos, depois dos Estados Unidos.
O Reino Unido tem um dos mais ambiciosos objectivos de redução das emissões de gases com efeito de estufa do mundo; comprometeu-se com uma redução de 68% em relação aos níveis de 1990 até 2030 e 78% até 2035, bem como ter neutralidade carbónica no sector de produção de energia até 2035.
Em 2020, o Governo então de Boris Johnson publicou um Plano para uma Revolução Industrial Verde, em que incluía o investimento em “centrais nucleares avançadas”. Já este ano, publicou um plano revisto, em que previa ter centrais nucleares com uma capacidade de 24 GW até 2050; levar um desses projectos até à decisão final de investimento ao Parlamento, até ao fim desta legislatura (2024); e levar ao Parlamento mais dois projectos entre 2025 e 2029, incluindo reactores modulares pequenos (SMR).
O Governo britânico está a apoiar o desenvolvimento de SMR com um fundo de 385 milhões de libras (441 milhões de euros), 215 milhões (246 milhões de euros) das quais foram destinadas aos projectos da Rolls Royce, que está a desenvolver um modelo que seria capaz de gerar 420 MegaWatts (MW).
Rússia
Este país domina o mercado internacional dos construtores de reactores. Em meados de 2022, tinha 20 unidades em construção, 17 das quais em sete outros países. Em 2021 a empresa estatal Rosatom iniciou a construção de dez reactores, seis dos quais na China, quatro na Índia, dois no Bangladesh e dois na Turquia. Estão avançadas as negociações para construir um reactor no Egipto. Mas é incerto o impacto que terão sobre estas obras as sanções internacionais por causa da guerra na Rússia.
A Rússia tem em funcionamento dois reactores pequenos modulares, que flutuam numa barcaça chamada Akademik Lomonsov, no Leste do país, que foram ligados à rede em 2019 e começaram a ter exploração comercial em Maio de 2020. Mas a sua performance é medíocre, dizem os autores do relatório, com dados da AIEA.
Apesar destes resultados menos bons, estão a ser desenvolvidos outros reactores SMR. Por exemplo, foi anunciada a construção de quatro destes reactores para alimentar de energia explorações mineiras no Norte da Sibéria, em princípio em 2026/2027.