“Nenhuma central nuclear aguenta o ataque de uma arma de guerra”
Relatório sobre a indústria nuclear no mundo traça um retrato dos perigos para as centrais no meio de um conflito. O risco é igual, quer se trate de um acidente , quer de um acto propositado de destruição.
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É preciso tornar isto claro logo à partida: “Nenhuma central nuclear foi alguma vez construída para operar em condições de guerra; isto simplesmente não foi previsto”, disse Christoph Pistner, especialista em segurança e engenharia nuclear no Instituto Öko, na Alemanha, que apresentou o capítulo sobre energia nuclear e guerra no relatório O Estado da Indústria Nuclear Mundial 2022, apresentado nesta quarta-feira por um grupo internacional liderado por Mycle Schneider, consultor independente em questões de energia e em particular de políticas relativas à energia nuclear.
Até à invasão da Ucrânia pela Rússia, havia pouca literatura científica sobre o que podia acontecer se centrais nucleares fossem apanhadas no meio de uma guerra. “Era uma espécie de tabu, ninguém queria pensar sobre isso”, disse Christoph Pistner. E, no entanto, nesta quarta-feira, o Presidente russo Vladimir Putin assinou um decreto em que dá ordem à empresa nuclear estatal russa, Rosatom, para que assuma o controlo da central nuclear ucraniana de Zaporijjia e a torne “propriedade da Federação” russa, noticia a Reuters.
Isto acontece depois de a central, a maior da Europa, com seis reactores, se ter encontrado na linha da frente na guerra na Ucrânia, e ter sido tomada pelo exército invasor russo. Várias vezes houve notícia de que a alimentação de electricidade foi interrompida, ou que houve disparos no perímetro da central, entre outros actos de guerra.
“O risco para uma central nuclear é igual quer se trate de um acidente ou de um acto propositado de destruição”, sublinhou Christoph Pistner, numa conferência de imprensa online.
Determinante para a segurança de uma central nuclear é manter a cadeia de refrigeração do reactor e também da piscina onde são armazenados os tubos de combustível nuclear usados, que durante anos libertam energia térmica e radioactividade.
“O decaimento dos elementos radioactivos faz com que haja calor, e se não for controlado, o reactor pode fundir-se, ou a água da piscina pode evaporar-se e o combustível ficar a descoberto. Nessa situação, podem formar-se grandes quantidades de hidrogénio, e pode haver explosões, como aconteceu em Fukushima”, salientou Christoph Pistner.
“As centrais nucleares são complexas instalações industriais, que para funcionar em segurança precisam de um ambiente estável, de ter funcionários devidamente formados e repousados, e não sob stress, como temos visto na Ucrânia. É também necessário garantir o abastecimento de electricidade vindo do exterior”, sublinhou o especialista em segurança na indústria nuclear.
Alguns (poucos) reactores a nível mundial foram reforçados para resistir ao impacto de um avião, por exemplo. “Mas nenhum aguentaria o ataque directo com armas de guerra”, frisou Christoph Pistner. Além disso, há serviços essenciais noutros edifícios – elementos da cadeia de refrigeração, instalações de comando e controlo, por exemplo, que, se forem atingidas, põem em causa a integridade da central.
Mais: “Não se pode assumir que os combatentes tenham um conhecimento profundo da relevância para a segurança de partes individuais da central nuclear. Desta forma, é frequente não serem capazes de avaliar os efeitos colaterais das suas acções de combate”, sublinha o relatório.
Durante o tempo da ocupação, a central de Zaporijjia continuou a ser operada por trabalhadores ucranianos, mesmo com os soldados russos a olhar por cima dos seus ombros. Mas há notícias da presença de elementos da empresa nuclear estatal russa Rosatom na central – provavelmente com o objectivo de assumir o controlo, como expressa o novo decreto de Putin.
A propósito disto, Mycle Schneider, o coordenador do relatório anual sobre a indústria nuclear mundial, sublinhou um potencial “problema de governação” em relação à guerra na Ucrânia que existe na Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), o organismo das Nações Unidas que tem como missão garantir a segurança das centrais nucleares, e ao mesmo tempo espalhar a tecnologia nuclear para usos civis.
“Vemos que a estatal russa Rosatom está envolvida na ocupação da Ucrânia, e o vice-director-geral e responsável pelo departamento de Energia Nuclear da AIEA é o russo Mikhail Chudakov, que dirigiu durante muito tempo empresas do universo da Rosatom”, frisou. “Surpreende-me que esta questão ainda não se tenha colocado.”
Há na verdade uma dependência do combustível nuclear russo – ou proveniente de ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central – em cinco países europeus, que têm centrais construídas pela Rússia: a República Checa, a Eslováquia, a Hungria, a Bulgária e a Finlândia. Já depois do início da guerra na Ucrânia, e do corte de voos da Rússia para os países da União Europeia, foram emitidas autorizações excepcionais para voos com combustível nuclear para a Eslováquia, por exemplo, avança o relatório.
“A única alternativa é o combustível produzido pela Westinghouse norte-americana, que agora está a registar um pico de interesse, e não sei quando conseguirá dar resposta”, diz Mycle Schneider. Por isso, algumas organizações não-governamentais e alguns eurodeputados têm feito pressão para que haja sanções contra o nuclear russo, tal como há contra o petróleo.
Corrigido o nome do orador principal: Christoph Pistner em vez de Michael Sailer