A Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) defende a construção de novas auto-estradas da água de norte para sul e a Federação Nacional de Rega (Fenareg) propõe a construção de mais barragens e o alteamento de outras. Outros conselheiros estão preocupados com o sector “produtivista” e as opções do Governo na procura de mais água.
Três anos depois, o Conselho Nacional da Água (CNA) voltou a reunir esta segunda-feira para debater a seca e os Planos de Gestão de Região Hidrográfica. No entanto outros temas estiveram em discussão comprovando “posições antagónicas” entre conselheiros com assento no CNA, referiu ao PÚBLICO, Rui Cortes, investigador na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e que faz parte daquele órgão.
A tensão também terá ficado patente quando o presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Eduardo Oliveira e Sousa, terá sugerido que o ministro do Ambiente e da Acção Climática (MAAC), Duarte Cordeiro, demitisse o secretário-geral do CNA, Joaquim Poças Martins, por este ter prestado declarações à comunicação social, alegando que “não podia falar sem primeiro ouvir os membros” do conselho, contou o investigador da UTAD.
Numa nota enviada depois ao PÚBLICO (ver nota de actualização e rectificação no final deste texto), Eduardo Oliveira e Sousa esclarece que não pediu “qualquer demissão” na referida reunião, tendo-se limitado a “expressar repúdio pelas opiniões pessoais publicamente emitidas” pelo secretário-geral do CNA e pedido ao conselho “uma clarificação objectiva relativamente às condições para a continuidade do Eng. Poças Martins no exercício deste cargo, atendendo às afirmações que o vincularam pessoalmente e, tão somente, nessa condição”.
Na origem deste diferendo estão declarações feitas a 24 de Setembro à agência Lusa por Joaquim Poças Martins, em que o secretário-geral do CNA responsabiliza em parte os agricultores pela situação de seca no país e os acusa de não fazerem uma gestão eficiente da água. Estas declarações motivaram logo na altura um protesto público da CAP, que repudiou, em comunicado divulgado a 26 de Setembro, um conjunto de afirmações que reputou de “enganadoras, ilusórias e insultuosas”, que “desprezam os agricultores e o esforço do seu trabalho na produção de alimentos” e que revelam “um profundo desconhecimento do sector agrícola” nacional.
Outra das propostas apresentadas pela CAP defende a construção de novas “auto-estradas da água com o transvase de afluências de norte para sul do país” e a Federação Nacional de Rega propôs a instalação de mais barragens e o alteamento de outras.
“Uma enormidade” contesta Rui Cortes, apontando para a redução da precipitação atmosférica e os sucessivos ciclos de seca que têm deixado os volumes de armazenamento na maioria das barragens, já instaladas. “abaixo dos 40%”. Mas apesar deste facto, o discurso do sector “produtivista” e governamental insiste em manter os contornos de um tipo de política que aposta na obtenção de mais água a curto prazo para a aplicar, na sua grande maioria, em culturas regadas.
Mil milhões para sete barragens no Tejo, o “pequeno Alqueva"
Está em marcha um projecto que prevê a construção de mais sete barragens ou diques no Tejo, prevendo-se um investimento mil milhões de euros, mas que pode chegar aos cinco mil milhões. É um empreendimento agrícola já denominado “pequeno Alqueva” que “vai abarcar vários afluentes do rio” explicou Rui Cortes, destacando os cerca de meio milhão de euros que o Governo já disponibilizou para a elaboração de estudos.
Significa, acrescenta o investigador da UTAD que “vamos ter barragens a jusante de outras barragens”, chamando a atenção para a necessidade urgente de reduzir as perdas de água no sector agrícola. Cortes refere que, “mesmo sem monitorização, as perdas de água oscilam entre os 35 e os 40%, um valor que diz interpretar “por baixo”. Na sua opinião “podem ser superiores”.
O paradoxo: seca e mais consumo
O CNA analisou também o “paradoxo” de o país ter suportado três anos de seca na última década e em simultâneo “registaram-se os mais elevados consumos de água de sempre”. A informação que chegou aos conselheiros deu conta da “razia” que foi a abertura de furos foi uma “por não haver capacidade para fiscalizar e averiguar estas ilegalidades” lembrou o investigador da UTAD, sublinhando a as preocupações de vários conselheiros com a apetência do sector agrícola para um crescendo no consumo de água.
A discussão no CNA analisou ainda as perdas de água nas redes públicas de abastecimento e constatou-se que continua a haver concelhos do país com perdas de água acima dos 50% quando o objectivo a alcançar a curto prazo aponta para os 18%.
Mesmo assim a intervenção nas redes urbanas de abastecimento prossegue a um ritmo de anda à volta dos 0,3% ao ano. A este ritmo a renovação dos sistemas a nível nacional demorará 300 anos, foi dito aos conselheiros, quando se sabe que as redes do sistema urbano de abastecimento estão velhas e não há investimento na sua renovação.
Apesar da situação crítica destes sistemas de abastecimento, as roturas nas redes sofreram uma redução de apenas 1%. Contudo há um dado positivo: cerca de 99% dos sistemas públicos de abastecimento fornecem água de boa qualidade.
O mesmo não se passa na rede hidrográfica nacional. A qualidade continua a degradar-se, mas os investimentos nos Planos de Gestão de Região Hidrográfica (PGRH) têm vindo a ser reduzidos. Assim “do 2º ciclo para o 1º houve uma redução de 50% e do 2º para o 3º ciclo o financiamento ficou pela metade do anterior” critica Rui Cortes com um exemplo: A estratégia, no âmbito PGRH, “para os rios e ribeiras está por fazer, mas avança-se para a construção de mais barragens” ou então aposta-se na dessalinização.
O problema é que esta opção implica “grandes investimentos na construção e posterior manutenção deste tipo de equipamentos” e não é de um momento para o outro que podem ser instalados. A única central de dessalinização em Portugal continental, projectada para o Algarve, “ainda se encontra em fase de Avaliação de Impacte Ambiental” e apenas irá satisfazer 1% das necessidades de água na região, observa o investigador.
Reutilizar águas residuais para que fins?
E a reutilização das águas residuais está limitada em termos de usos. Só faz sentido junto de ETAR de grandes dimensões. O projecto anunciado recentemente pelo Governo pretende atingir 5% de utilização do volume destes efluentes a nível nacional, mas neste momento o consumo está apenas no 1,5% e no Algarve atinge os 3%.
A reutilização da água proveniente dos efluentes domésticos e industriais “pode ser viável na rega de espaços verdes como campos de golfe, lavagem de ruas e há indicações que já estará a ser utilizada na rega de olivais com água de ETAR”. O problema, acentua o investigador, “é que ainda não existe uma rede de distribuição própria para este tipo a recurso hídrico”.
Por outro lado, a sua utilização por exemplo nas culturas hortícolas “seria susceptível de gerar repulsa nos consumidores factor que iria desvalorizar os produtos”, observa Rui Cortes.
O CNA não debateu os recentes conflitos gerados por agricultores espanhóis com o envio de água para Portugal, nem sobre os caudais dos rios internacionais (Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana). Alguns conselheiros alertaram para o risco de renegociar a Convenção de Albufeira no actual contexto onde está patente a escassez de recursos hídricos.
O PÚBLICO contactou José Núncio presidente da Fenareg, mas este conselheiro escusou-se a fazer comentários sobre o conteúdo da reunião, anuindo apenas em dizer que “não há propriamente um conflito no Conselho Nacional da Água, o que há é pouca água e não posso dizer mais”. O PÚBLICO tentou também ouvir o presidente da CAP e o vice-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, mas sem sucesso até à hora de publicação desta notícia.
Notícia corrigida e actualizada às 13h30 de 06.10.2022: No terceiro parágrafo desta notícia referia-se que o presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Eduardo Oliveira e Sousa, tinha usado da palavra na reunião do Conselho Nacional da Água para pedir a demissão de Francisco Godinho, então identificado como vice-presidente do CNA. Ora, nem Francisco Godinho ocupa esse cargo (é, na verdade, adjunto do secretário-geral deste órgão) nem a intervenção do presidente da CAP foi dirigida à sua pessoa, ao contrário do que escrevemos. Numa nota de esclarecimento enviada ao PÚBLICO nesta quarta-feira, Eduardo Oliveira e Sousa – que o PÚBLICO tentara contactar várias vezes na véspera, antes da publicação da notícia – esclarece que a sua intervenção visou sim o secretário-geral do CNA, Joaquim Poças Martins, nos exactos termos que esta notícia, entretanto actualizada, agora refere. Ao presidente da CAP e aos leitores, as nossas desculpas pelo erro.