Bastaram dois minutos para fuzileiros deixarem polícia às portas da morte

Ministério Público fala da violência da noite lisboeta e diz que suspeitos confraternizaram com seguranças à entrada da discoteca Mome depois de terem praticado agressões bárbaras. Só por acaso não houve mais vítimas mortais.

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Fábio Guerra morreu dois dias depois da agressão na sequência de uma hemorragia intracraniana grave DR

Bastaram dois minutos aos fuzileiros que estavam à porta da discoteca Mome, na Av. 24 de Julho, em Lisboa, para terem posto fora de combate vários polícias, ao murro e pontapé na fatídica madrugada de 19 de Março passado. Um deles, o agente Fábio Guerra, de 26 anos, havia de morrer dois dias depois na sequência de uma hemorragia intracraniana grave.

Na acusação de homicídio qualificado que deduziu contra os fuzileiros Cláudio Coimbra e Vadym Hrynko, nascido na Ucrânia, o Ministério Público sublinha a natureza “extraordinariamente bárbara, violenta e desproporcional” destas agressões, das quais “não resultaram outras mortes por mero acaso”. Um terceiro suspeito desta morte, Clóvis Abreu, continua a monte.

O desacato começou ainda dentro da discoteca. Já a noite estava quase a terminar quando Cláudio Coimbra, que no ano passado foi campeão de boxe amador, se envolveu numa discussão com outro cliente da casa. Em plena pista de dança deu-lhe várias cabeçadas. A altercação havia de continuar no exterior, e foi precisamente quando deram por ela que os polícias, que ali tinham ido também depois de um jantar de convívio resolveram agir.

Já passava das 6h quando viram os fuzileiros e outros membros do seu grupo pontapearem no crânio o cliente com quem tinha tido lugar a refrega, mesmo depois de o terem deixado inconsciente, estendido no chão, “fazendo com que a sua cabeça se movimentasse de um lado para o outro”. O espancamento aconteceu defronte da discoteca do lado, a escassos metros de distância do Mome. “Polícia, pára!”, terá gritado um dos agentes, tentando impedir que os agressores continuassem a bater no homem desmaiado. Foi nesta altura que os agentes da autoridade se tornaram alvo das suas atenções. Os gritos “Parem, somos da polícia” de nada lhes valeram.

Num espaço de dois minutos, e sem recurso a qualquer tipo de armas, os fuzileiros puseram quatro polícias KO, descreve a acusação: “As agressões ocorreram entre as 06h19 e as 06h21, de forma muito violenta, concentrada e sucessiva, utilizando os arguidos os especiais conhecimentos de luta adquiridos nos fuzileiros.”

A sua preparação militar e desportiva permitiu-lhes “aplicarem violentos golpes de socos, de tal forma violentos, que as vítimas caíam ao chão, nalguns casos inconscientes”, prossegue o mesmo relato. Com o braço partido e várias outras sequelas, um dos agentes ficou dois meses sem poder ir trabalhar.

Depois disso, os militares ainda tiveram tempo para uma conversa amigável com os vigilantes do estabelecimento de diversão nocturna: “Ao passarem pelos seguranças que se encontravam perto da entrada da discoteca Mome confraternizaram com estes, encolhendo os ombros, com indiferença.”

Na altura, os responsáveis pelo estabelecimento fizeram questão de sublinhar que as agressões tiveram lugar na rua e que nenhum colaborador seu esteve envolvido nelas. Quando o Mome abriu, em 2018, destinava-se a um público “mais maduro, de classe média alta”, pessoas que gostavam “de se divertir sem grandes confusões”.

Escreve a procuradora responsável por este inquérito que destes incidentes só não resultaram mais mortes por mero acaso, “considerando o local preferencial das agressões, a zona da cabeça, e não obstante os ofendidos terem perdido os sentidos” ao primeiro murro. Mas diz mais a magistrada, ao falar da noite da capital como um lugar perigoso. “A noite de Lisboa tem sido particularmente afectada pela violência que importa travar, para restabelecer a tranquilidade à população e permitir que não exista o receio de sair à noite em virtude de existir uma elevada probabilidade de se tornarem vítimas de crimes”, observa, ao mesmo tempo que defende que os fuzileiros, que se encontram na cadeia de Tomar, continuem em prisão preventiva.

Quando tudo aconteceu os suspeitos preparavam-se para integrar uma missão das Nações Unidas. Várias testemunhas ouvidas pela Polícia Judiciária manifestaram o receio de contarem tudo o que presenciaram naquela noite, por temerem represálias por parte dos suspeitos ou de pessoas ligadas a eles, e as autoridades levaram isso em conta: “A investigação acredita que poderá suceder que alguém exerça directa ou indirectamente pressão sobre as testemunhas, com o objectivo de condicionar os seus depoimentos”. Por isso, e ao contrário do que é habitual, as suas moradas reais não constarão do processo.

De resto, um dos fuzileiros, Cláudio Coimbra, já no ano passado viu aberto um outro processo-crime contra si por agressão a um GNR, a quem terá gritado ameaças de morte: “Vais morrer, bófia, filha da puta, branco, vais morrer, nem que seja com armas”.

O Ministério Público reclama aos arguidos o pagamento de 184 mil euros, a maior parte dos quais dizem respeito à indemnização que o Estado entregou à família de Fábio Guerra por conta da sua morte.

O seu advogado, Miguel Santos Pereira, equaciona neste momento pedir um tribunal de júri para o julgamento. Diz que um dos vídeos que existem dos acontecimentos mostra que os polícias, que vinham de outro estabelecimento de diversão nocturna, estavam claramente alcoolizados e que a certa altura Fábio Guerra se aproxima por trás do seu cliente e lhe dá um soco. “Todos se portaram mal, uns e outros”, conclui. “Mas a acusação insiste em que os agentes estavam ao serviço”.

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