Sobre o Progresso, a Liberdade e a Responsabilidade
Há uma diferença, grande, entre causa e sintoma. Se não percebermos essa diferença, não podemos avançar soluções, seja qualquer for o problema. Isto parece óbvio, mas não é. Olhemos para o problema ecológico como um todo, e depois para as soluções que avançamos: 85% dos stocks de peixes estão sobre-explorados ou esgotados; estamos a provocar a 6ª extinção em massa da história do planeta, incluindo de 75% das espécies de polinizadores e 30% das aves na Europa; o consumo de água e a degradação dos solos decorre a um ritmo muito maior do que a Natureza consegue regenerar; a desflorestação é galopante; etc, etc. Nenhum destes problemas resulta das emissões de CO2. E isto é porque as emissões de CO2, apesar de preocupantes, não são a causa do problema. São um sintoma.
A causa - o verdadeiro problema - é que a nossa sociedade se tornou numa mega-máquina que transforma a Natureza em lixo. É hoje refém da cada vez maior extração de matérias-primas e recursos energéticos para produzir os bens e serviços que, depois ou durante o processo de extração, causam poluição em estados líquido, sólido e gasoso - este último onde se incluem as emissões de CO2.
É isto que os economistas, os colunistas de órgãos da comunicação social, tantos empresários, e mesmo governantes não entendem. Obcecados que vivem com o conceito abstrato do crescimento económico a todo o custo, não entendem, pura e simplesmente, a natureza do problema em mãos, e acabam por confundir causas com sintomas.
É o que os leva a focar-se unicamente na redução das emissões de gases com efeito de estufa - parca “solução” que leva ao agravamento de todos os outros problemas. Vejamos qualquer exemplo, como as energias renováveis, as smart-cities, os carros elétricos, ou outras tentativas de “descarbonização”: estas (alegadas) soluções implicam sempre e invariavelmente a abertura de mais e maiores minas capazes de aumentar a extração dos minerais e terras raras, lítio e outros, necessários para construir toda a infraestrutura necessária.
Isto resulta na destruição de cada vez mais ecossistemas, reduzindo ainda mais a biodiversidade. Leva também a uma enorme poluição mineira, ao uso massivo de água, a violências sociais nos locais de extração e para além deles, e a múltiplas outras questões de saúde associadas à poluição de ecossistemas e aquíferos. E mais, a imensa quantidade de combustíveis fósseis que ainda alimentam 85% das cadeias produtivas globais, necessária para produzir as tais fontes “renováveis”, bem como o reduzido tempo de vida que essas infraestruturas têm, torna o próprio conceito de “renovável” um absurdo.
E, mesmo imaginando que fosse possível eletrificar todo o sistema, incluindo toda a maquinaria extrativista que o constitui (como barcos pesqueiros elétricos e high-tech para pescar o que resta dos peixes dos oceanos, bulldozers elétricos ainda mais eficazes na desflorestação, máquinas agroindustriais topo de gama, etc) acabaríamos por destruir com ainda maior eficácia a biosfera, continuando a produzir enormes desertos de monoculturas de plantas e animais que acabam com os aquíferos e os solos, e, em última análise, com os ecossistemas.
Estamos, coletivamente e embalados pelas colunas de opinião destes senhores, em negação face à natureza mesma do problema. Perante o colapso iminente de um sistema dependente de crescimento económico exponencial, a solução não pode ser apenas descarbonizá-lo. O que é preciso é desacelerar. E muito! E é aqui que emerge a noção de decrescimento (que não significa “o contrário de crescimento” - a isso chama-se recessão).
O decrescimento é um novo projeto de sociedade que pretende, precisamente, reduzir os fluxos materiais e energéticos das nossas economias, sem o caos invariavelmente associado a uma recessão violenta e despreparada. No fundo, e face à “lamentável litania do fracasso da humanidade em combater as alterações climáticas”, o decrescimento tem a coragem de perguntar: e se as estratégias hoje avançadas para o problema ecológico não funcionarem (sendo que claramente não estão a funcionar)? É preciso que comecemos – com urgência – a trabalhar num plano B; i.e. a desenvolver alternativas o quanto antes, a pensar nos barcos salva-vidas agora - e não apenas quando o barco começar a afundar...
Para isto, o decrescimento propõe uma democracia participada e descentralizada, repensando ou aprofundando aquela que temos. Fá-lo com coragem, em busca de propostas participadas, em vez de continuar preso ao presente mantra “democrático-representativo” de sociedades que começam a perceber que nestes moldes a mudança necessária se torna impossível.
O decrescimento propõe também repensar a noção de Progresso. Vê-o como algo a definir coletivamente, e não apenas como algo abstrato, definido pelo “bling-bling” do que é novo e brilhante, sempre mais high-tech, 4G, 5G, ou depois 6G e ainda mais rápido… O “progresso” que os países do Norte global (e as classes privilegiadas do Sul global) vivem hoje, passando do iphone 8 para o iphone 15, ou de 4 canais de TV para 600, ou de poder escolher entre 150 marcas diferentes de iogurte no supermercado, não é progresso – é uma expressão da adição coletiva que urge repensar.
Liberdade é outra noção que é preciso reconsiderar. Liberdade não é meramente a possibilidade daqueles que dispõem dos recursos financeiros necessários comprarem e terem tudo o que querem, sempre que querem, sem pensar nos demais. A isso chama-se vício. A Liberdade que o movimento decrescentista propõe é a de viver fora de prisões, físicas e mentais.
A Revolução Francesa teve como lema “Liberté, Egalité, Fraternité"; estes são conceitos sociais, coletivos. Não pode haver Fraternidade sem os outros, como não se pode ter igualdade consigo mesmo. O mesmo acontece com a Liberdade. É um conceito coletivo, em que uma sociedade se organiza livremente, para definir e defender um modelo que assegure a sua resiliência, sobrevivência e longevidade. Precisamente o que o decrescimento propõe.
Há um outro conceito que o decrescimento convida a explorar: o da Responsabilidade. Não temos, a maioria de nós, culpa do estado atual do mundo e da Natureza. Mas temos a responsabilidade pelo que se segue. Ainda não há uma estratégia definitiva para organizar a redução do consumo de recursos naturais e de energia. Mas isso vai acontecer, de uma maneira ou de outra.
A ideia de que a economia pode crescer constantemente, é tão absurda quanto perigosa num planeta com recursos finitos. É possível começar a reorganizar a sociedade e os sistemas económicos, agora. Não fazer nada e continuar como se nada fosse, é a receita para o caos e para o desastre. O movimento decrescentista propõe agir já, antes de ser tarde demais. Abandonar o vício - mitológico - do crescimento económico infinito e explorar, sem medo e coletivamente, novas noções e expressões de progresso, inovação, sustentabilidade e liberdade.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico