Cientistas climáticos que desmontam teorias conspirativas estão a ser perseguidos

Uma aliança de teóricos da conspiração, libertários e grupos conservadores - alguns com ligações aos combustíveis fósseis – perseguiram investigadores que forneceram verificações de factos utilizadas para contrariar desinformação que circula em redes como o Facebook e o TikTok.

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Cientista climático Doug MacMartin foi surpreendido com um processo após um trabalho de verificação de factos Jim McAuley/Bloomberg

Os cientistas climáticos muito activos nas redes sociais têm agora algo mais com que se preocupar para além do aumento da temperatura global.

Uma aliança de teóricos da conspiração, libertários e grupos conservadores alguns com ligações aos combustíveis fósseis – perseguiram investigadores que forneceram verificações de factos utilizadas para contrariar desinformação que circula em redes como o Facebook e o TikTok.

Os investigadores do clima, que muitas vezes se oferecem como voluntários, têm enfrentado processos judiciais destinados a drenar recursos e dissuadir este trabalho de combate à desinformação. Estes cientistas também têm recebido um volume enorme de pedidos de informação das instituições públicas que os empregam. [A legislação em causa a Lei de Liberdade de Informação ou, na sigla inglesa, FOIA (Freedom of Information Act) obriga a desclassificar e a tornar pública muita documentação anteriormente reservada, classificada ou não divulgada.]

Esta ferramenta é frequentemente utilizada por jornalistas para investigar agências públicas. Os investigadores dizem que os registos públicos que são divulgados como resultado dos pedidos são, por vezes, utilizados para desafiar ou difamar – o seu trabalho. Em última análise, destinam-se a amordaçá-los.

“Fazem questão de ir atrás dos verificadores de factos porque, para além de pararem com a regulamentação, também querem impedir ou desencorajar os cientistas climáticos de fazer coisas que possam educar o público”, disse Lauren Kurtz, directora executiva do Fundo de Defesa Jurídica da Ciência Climática.

A organização de Kurtz fornece assistência jurídica aos investigadores. E, dizem, 2022 foi o ano mais movimentado até agora.

Doug MacMartin é apenas um dos beneficiários do fundo. No Outono passado, enquanto fazia malabarismos para lavar a loiça e entreter o seu filho recém-nascido em casa, cheio de manchas de vómito na camisa, um estranho tocou à campainha e entregou-lhe um processo judicial.

O queixoso, Dane Wigington, gere uma página chamada GeoEngineering Watch, que se dedica a expor “engenharia climática global”, ou o uso de tecnologias para alterar os sistemas climáticos. Wigington fez um documentário repleto de teorias conspiratórias, chamado The Dimming, sobre o mesmo tema. Entre as suas afirmações está a de que os rastos de condensação deixados pelos aviões eram, na realidade, produtos químicos perigosos a serem libertados por ordem do Governo para mitigar o aquecimento global.

MacMartin descreveu o documentário como “pura fantasia” no site de verificação de factos Climate Feedback. Tanto o TikTok como o Facebook usam a página para avaliar o rigor dos conteúdos sobre ciência publicados naquelas redes.

Wigington afirma que os comentários de MacMartin levaram o Facebook a limitar a visibilidade do seu documentário, restringindo o seu alcance e a quantidade de receitas que gerou. Ele pediu a MacMartin – e não ao Facebook ou ao Climate Feedback - 75000 dólares (um valor semelhante em euros) pelos “danos” causados.

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O cientista Doug MacMartin foi processado por Dane Wigington, que gere uma página chamada GeoEngineering Watch Jim McAuley/Bloomberg

“Senti sobretudo incredulidade”, recorda MacMartin. “Um pouco de choque combinado com uma reacção de ‘simplesmente não tenho tempo para isto'”.

Os investigadores têm sido atingidos por processos judiciais e pedidos da Lei da Liberdade de Informação dos seus empregadores públicos, que requisitam registos volumosos de informação, que depois são utilizados, por vezes fora do contexto, para minar o próprio trabalho dos verificadores de informação, garantem.

Em pouco mais de uma década, o grupo de Kurtz ajudou 240 investigadores a defenderem-se de processos judiciais e de outros tipos de desafios dos opositores. Isto inclui dezenas que envolvem a luta contra o que eles acreditam serem pedidos de registos públicos destinados à intimidação, de acordo com Kurtz. O fundo normalmente ajuda cerca de 40 cientistas por ano. Em 2022, foram apoiados 35 cientistas.

Os pedidos de registos públicos, e os dados que por vezes revelam, têm sido uma ferramenta-chave para ambas as partes na questão das alterações climáticas, utilizada para responsabilizar as empresas de serviços públicos, mas também pelos cépticos do clima para extrair informações que possam desacreditar um cientista do clima.

Daniel Swain, um cientista climático da Universidade da Califórnia (UCLA) que fala com frequência sobre incêndios e secas no Oeste dos Estados Unidos, recordou a própria experiência frustrante ao lidar com um pedido de registos públicos. Um grupo chamado Energy Policy Advocates enviou um pedido de registos à UCLA em busca de e-mails, mensagens de texto e mensagens privadas encriptadas relacionadas com uma verificação de factos elaborada por Swain e outros.

Tratava-se de uma crítica do livro Unsettled: What Climate Science Tells Us, What It It Doesn't, and Why It Matters, de Steven Koonin, subsecretário para a ciência no Departamento de Energia sob a direcção do Presidente Barack Obama, para o periódico Wall Street Journal.

Swain tentou contestar o pedido recorrendo a um advogado universitário, queixando-se da “intenção presunçosa de interromper a investigação primária e as actividades de divulgação, inundando os cientistas climáticos com pedidos”. Um representante do departamento de registos, embora compreensivo, respondeu que as motivações dos requerentes eram irrelevantes e que estavam obrigados por lei a fornecer a informação.

“Passo noites e fins-de-semana a compilar e rever milhares e milhares de e-mails porque estes pedidos são extremamente amplos”, disse ele. “Em alguns casos, são essencialmente vagos. Estão a perguntar sobre múltiplos anos, múltiplas palavras-chave e múltiplas plataformas”.

Swain, que recebe regularmente ameaças de morte e mensagens de ódio, disse que está suficientemente seguro no seu trabalho para continuar a falar contra o que acredita serem falsas alegações climáticas. Mas ele disse que nem todos têm esse luxo.

“Penso que algumas pessoas vêem isto como: ‘Porque é que eu iria voluntariamente tornar isto mais difícil para mim?” disse ele.

Emmanuel Vincent, um cientista climático francês que dirige o Climate Feedback com sede em Paris, disse que investigadores voluntários e membros do pessoal pago que realizam verificações de factos recebem diariamente emails desagradáveis.

O Climate Feedback é contratado pelo Facebook e pelo TikTok para aconselhar quando um post deve ser removido ou parcialmente bloqueado, parte de um esforço mais amplo para refrear a propagação de informações falsas. O grupo sem fins lucrativos está envolvido em dois processos judiciais de sujeitos das suas verificações de factos, disse.

No início deste ano, por exemplo, a organização foi processada pelo jornalista libertário John Stossel, que procura obter mais de dois milhões de dólares (o mesmo valor em euros) e co-réu Meta Platforms. Entre as alegações de Stossel está o facto de o Facebook ter limitado a visibilidade do seu vídeo sobre os incêndios florestais de 2020 na Califórnia chamado “Government Fueled Fires” porque os verificadores de factos do Facebook e do Climate Feedback “falsamente atribuíram a Stossel uma alegação que ele nunca fez, e nessa base assinalaram o conteúdo como ‘enganoso’ e ‘contexto em falta'”, de acordo com o processo judicial.

Numa entrevista, Stossel rejeitou a ideia de que o processo iria intimidar os cientistas. Em vez disso, ele disse que se concentrava em forçar o Facebook a reconsiderar os rótulos que tinha colocado nos seus vídeos. Stossel disse que parte dos seus honorários legais estava a ser financiada por indivíduos ricos, mas recusou-se a revelar nomes. “O Climate Feedback é um grupo activista que quer que as pessoas fiquem histéricas acerca das alterações climáticas”, disse ele.

Entre os grupos que mais pedidos de registos públicos e processos judiciais apresentaram estão os Energy Policy Advocates, que pediram os registos de Swain, e um grupo relacionado, Government Accountability and Oversight. Eles possuem os acrónimos EPA e GAO, os mesmos utilizados pela Agência de Protecção Ambiental e pelo Government Accountability Office.

De acordo com os seus websites, as duas organizações trouxeram centenas de pedidos de registos de acesso público a agências e universidades públicas que empregam cientistas climáticos, incluindo alguns que ajudaram a realizar verificações de factos sobre o Climate Feedback.

O Government Accountability and Oversight afirma no seu website que procura educar o público, utilizando leis litigiosas e registos abertos, sobre a utilização de recursos públicos para promover uma agenda específica sobre política ambiental e energética. O seu co-fundador, Christopher Horner, é autor de livros como Red Hot Lies: How Global Warming Alarmists Use Threats, Fraud and Deception to Keep You Misinformed.

Tanto Horner como a sua organização estão ligados ao sector da energia. Horner recebeu pagamentos da companhia de combustíveis Alpha Natural Resources, e a Government Accountability and Oversight recebeu pelo menos 300 mil dólares (valor semelhante em euros) da companhia mineira Murray Energy, de acordo com os pedidos de falência. O pagamento à Government Accountability and Oversight foi previamente comunicado pela Intercept.

A Alpha Natural Resources recusou-se a comentar, ao passo que a Murray Energy não respondeu a um pedido de reacção. A Government Accountability and Oversight forneceu aos Defensores da Política Energética, com os quais partilha um oficial principal, pelo menos 40.000 dólares em financiamento nas suas fases iniciais.

Um dos membros do conselho dos Defensores da Política Energética, Michael Gardner, é um advogado que trabalhou para várias empresas mineiras de carvão, de acordo com o seu website.

(Os Energy Policy Advocates também procuraram registos públicos com referências a Mike Bloomberg, o fundador da Bloomberg News, relacionados com o financiamento filantrópico de cargos em procuradorias gerais do estado para combater acções que minam as alterações climáticas, energia limpa e protecção ambiental. Um representante da Bloomberg recusou-se a comentar).

Rob Schilling, director executivo da Energy Policy Advocates, disse que a sua organização se concentra no que dizem os registos públicos. Mais precisamente foca-se na “forma como certos actores estão a utilizar a confiança do público e o dinheiro do público”.

Mesmo método da Greenpeace?

“Pensamos que o público merece saber como é que o governo veio a ser utilizado para atender a uma determinada agenda”, disse Schilling num e-mail. O Greenpeace utiliza métodos semelhantes, disse, acrescentando que o trabalho dos Defensores da Política Energética é modelado segundo o grupo ambiental. Ele recusou-se a responder a outras questões apresentadas pela Bloomberg.

Horner não respondeu a um pedido de comentários.

Reagindo à observação de Schilling, Tim Donaghy, gestor de investigação da Greenpeace USA, disse: “Quer tenham copiado ou não os nossos métodos ligados à Lei de Liberdade de Informação, com certeza passaram ao lado da ciência básica”.

“É absurdo que se comparem ao Greenpeace - estamos a tentar proteger as pessoas e o planeta”, disse ele. “Eles estão a tentar apoiar uma indústria moribunda”.

Koonin, cujo trabalho foi criticado por Swain e outros, já acusou anteriormente os verificadores de factos do Climate Feedback de suprimir a discussão aberta. Ele disse que Swain e outros criticaram o seu trabalho com base numa crítica do Wall Street Journal, e não o livro em si.

“A verificação dos factos foi um trabalho bastante descuidado, indigno de um grupo de académicos superiores”, disse ele num e-mail, acrescentando que não conhecia os Defensores da Política Energética ou a Responsabilização e Supervisão do Governo.

Peter Neff, professor assistente de investigação na Universidade do Minnesota, mais conhecido como Icy Pete para os seus 195 300 seguidores no TikTok, descobriu que os Defensores da Política Energética tinham pedido registos públicos enquanto estava de férias com a sua família no ano passado. Neff, um voluntário de verificação de factos na Climate Feedback desde 2016, disse ter recebido instruções para partilhar todas as suas trocas de mensagens realizadas no ano passado mencionando Emmanuel Vincent.

Neff não tinha nenhum e-mail explosivo para partilhar. Mas ele disse que outros cientistas tomam frequentemente posições contrárias quando debatem com colegas - exactamente o tipo de coisas que podem ser retiradas do contexto e utilizadas contra eles.

“Basta fazer-nos pensar duas vezes sobre a forma como interagimos com o público, como se estivéssemos a assumir uma responsabilidade pessoal potencialmente por apenas falar sobre aquilo em que somos especialistas”, disse ele.

Pela sua parte, MacMartin passou 10 meses a lutar com o processo judicial de Wigington, mas recentemente recebeu algumas boas notícias. A 1 de Setembro, um juiz do tribunal federal da Califórnia rejeitou o caso de Wigington.

Wigington disse que planeia recorrer.