Dos quartos para estudantes à luta das mulheres iranianas: o que evocam os partidos nos 200 anos da Constituição

No bicentenário da Constituição de 1822, os partidos recuperaram as inspirações do passado para olhar para os problemas do presente. Governo marcou presença (mas só metade).

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A cerimónia contou com a presença de membros do Governo LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO
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Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto Santos Silva foram dois dos oradores LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO
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Os 200 anos da assinatura da Constituição de 1822 foram assinalados numa sessão solene no Parlamento LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO

Na celebração dos 200 anos da aprovação da Constituição de 1882, os partidos olharam para o estado do país - e do mundo - e lançaram reptos ao Governo (que só ocupou cerca de metade das cadeiras da sua bancada no hemiciclo) para pedir garantias de acesso à habitação, saúde e educação, com as críticas mais fortes a chegarem das bancadas da Iniciativa Liberal e do Chega.

Pelo PS, o deputado Rui Lage destacou o papel decisivo do Porto para o sucesso da Revolução Liberal de 1820 e considerou que o espírito de 1822 poderá ser “um antídoto” enquanto “a separação de poderes afrouxa e o credo iliberal faz caminho”. Numa alusão à guerra da Rússia contra a Ucrânia, o socialista falou dos “tempos sombrios” que ameaçam “a fragilidade constitutiva da política”. “As constituições também morrem. E não faltam nações onde os direitos liberais e sociais permanecem indisponíveis, senão mesmo inalcançáveis”, considerou.

Pelo PSD foi Alexandre Poço, também líder da Juventude Social Democrata (JSD), quem citaria um artigo repetido noutras intervenções para vincar que “a Nação é livre e independente, e não pode ser património de ninguém”. O social-democrata apoiou-se naquele artigo para dizer que, hoje, “em muitas áreas”, esse respeito pelos direitos fundamentais está “em risco ou longe de ser garantido na vida concreta”. E deu exemplos: o direito à saúde e o direito à protecção e solidariedade social na velhice.

Insucesso e o papel dos liberais

Já da bancada do Chega, André Ventura afirmou que a “história do constitucionalismo” é a história do “insucesso” e da “ineficácia” da sociedade portuguesa. Para o líder e deputado do Chega a separação de poderes está em risco. “Enquanto houver um português que não consegue ter condições de vida dignas neste país, nós falhámos Abril, falhámos o constitucionalismo e falhámos o liberalismo”, disse.

Por sua vez, João Cotrim de Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal, sublinhou que foi “um punhado de liberais convictos” que iniciou a revolução de 1820, lembrando que essa revolução “não mereceu sessão solene” no Parlamento.

Na sessão solene no Parlamento, a primeira intervenção coube ao deputado único do Livre, Rui Tavares, que partiu do terramoto de 1755 e das inspirações das revoluções americana e francesa. De Alexander Hamilton, pai da Revolução Americana, a Maximilien Robespierre, “criatura do Terror na Revolução Francesa”, o historiador Rui Tavares deu uma curta aula e quis saber que “revoluções, que constituições, que bibliotecas do futuro farão os filhos da covid-19, do regresso da guerra à Europa e das manifestações contra as alterações climáticas”.

“Tudo depende da democracia e da liberdade que lhes soubermos preservar”, respondeu. Tavares lançou ainda um desafio aos presentes: “Que tal pegarmos nos milhares e milhares de metros quadrados construídos e esvaziados em pleno centro das nossas cidades — em particular quartéis — e transformá-los em residências universitárias, pelo menos temporárias? Ao fazê-lo não combateremos só a inflação, e a escassez, e as desigualdades, e se o fizermos bem até os gases com efeito de estufa — mas estaremos sobretudo a preparar as velhas casas para que elas possam albergar as ideias novas”, concluiu.

Inês de Sousa Real, líder e deputada única do PAN, a segunda deputada a discursar na cerimónia, recebeu um aplauso quando subiu ao púlpito para falar da luta das mulheres iranianas, numa alusão à morte de Mahsa Amini, uma curda de 22 anos, que terá sido espancada depois de ser detida por uso “indevido” do véu islâmico. E depois dirigiu-se aos presentes para lembrar que o legado de 1822 “é especialmente importante quando nesta casa, 200 anos depois, ainda há alguns que querem instaurar castrações químicas, cortes de mãos ou penas perpétuas, que querem negar o direito do preso à reinserção social e que têm dúvidas sobre a pena de morte”.

As ameaças à democracia e a Constituição que veio do povo

Pelo Bloco de Esquerda, Joana Mortágua notou que “embora de existência fugaz”, a Constituição “teve um enorme valor político, jurídico e histórico” pelo seu carácter revolucionário, apesar das suas limitações e reduções. Joana Mortágua recordou a independência do Brasil, que “manteve o poder dos escravocratas” para criticar D. Pedro, “hoje tão celebrado” que dissolveu a Constituinte brasileira “porque não lhe agradava o liberalismo radical que se perfilava nos representantes do povo brasileiro” para lembrar que “pode sempre acontecer uma vila-francada para acabar com as democracias”.

E num último tributo de memória à Constituição de 1822, Joana Mortágua recordou que foi com esse texto que nasceu a escola pública para rapazes e raparigas em todos os lugares do território. “Esse era o horizonte imaterial mais material que ali ficou de um novo Portugal”, concluiu.

A deputada Alma Rivera, do PCP, recordou o nascimento de direitos como a liberdade de associação, a liberdade de reunião, o direito de resistência, lamentando, porém, as limitações que davam apenas a quem tinha posses o direito de votar. “Quanto ao povo, permaneceu arredado do poder político, mas não calou a revolta”, vincou. Depois disso, houve ainda a ditadura fascista e de 48 anos de “liquidação das mais básicas liberdades, de feroz repressão sobre quem aspirava uma vida melhor”. E elegeu Abril para elogiar a Constituição de 1976, que reflecte o que “veio da força do povo”, mesmo “apesar das várias revisões que a mutilaram” e “sem paralelo em anteriores constituições”.

Alma Rivera criticou ainda a tentativa de “repristinar o liberalismo” e lembrou que “só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação”.

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