Espanha: “Não há água que chegue. Se nos tiram esta, de que vamos viver?”
As comunidades de regantes afectadas pelo envio de água de afluentes do Douro para Portugal, ao abrigo da Convenção de Albufeira, querem que os reservatórios que lhes alimentam os campos sejam retirados do acordo. A luta está para durar.
Pablo Carbajal tem mais do que uma actividade: é o alcade de Calzada del Coto, na província de Leão, em Espanha, e tem campos de regadio onde produz milho e alfafa. Até ao ano passado era também produtor de gado, tinha uma manada de 220 vacas, mas abandonou a actividade de toda uma vida, porque, simplesmente, já não era rentável. Agora, é o que cresce nos campos que lhe garante o sustento e, por isso, nem quer ouvir falar na possibilidade de perder alguma da água que lhe permite pensar em colheitas decentes.
Assim, juntou-se aos protestos dos agricultores espanhóis, no início desta semana, exigindo, como todos eles, que se reveja a Convenção de Albufeira. A água que ali chega, dos vários reservatórios do rio Esla, é toda necessária para manter os campos a produzir, garante.
De sorriso fácil, Pablo Carbajal entrecorta o que vai explicando sobre os protestos dos agricultores de Leão, Salamanca e Zamora, com uma frase que repete várias vezes: “Diga aos portugueses que não temos nada contra vocês, sim? Somos povos irmãos.” Quer deixar bem claro que, quando os agricultores exigem uma revisão a Convenção de Albufeira, assinada por Portugal e Espanha em 1998, e que estabelece a gestão dos caudais dos rios ibéricos, não estão com isso a dizer que o seu país deixe de libertar água do Douro (que aqui está em causa), o Minho, o Tejo ou o Guadiana, capaz de garantir o consumo das populações, manter o caudal ecológico ou regar os campos e dar de beber aos animais.
O que ele e os outros agricultores não querem é que a água que abastece os seus campos seja desviada para Portugal para alimentar a produção de energia eléctrica. E é isso que dizem que está a ser feito.
O agricultor integra a Comunidade de Regantes de Payuelos, que representa cerca de sete mil agricultores e o muito que mudou na região nas últimas décadas. Quando a Convenção de Albufeira foi assinada, não havia na área abrangida pela comunidade, a leste da cidade da Leão, os milhares de hectares de cultura de regadio que hoje há. Percorrer, hoje, os campos de Sahagún, onde está a sede da comunidade, é encontrar terrenos secos ainda dedicados a culturas de sequeiro, como o trigo, mas muitos, muitos campos pintados de verde, com os respectivos sistemas de rega implantados, em que o que cresce é o milho, a alfafa ou a beterraba.
David Urquiza Llorente, secretário técnico da comunidade, explica o que está em causa de outra forma: “Quando foi assinada a Convenção de Albufeira, não havia 80 mil hectares de regadio na província de Leão.” Só na área de Payuelos são hoje 38 mil hectares, diz, lembrando que esta mudança na produção da região foi acompanhada de um investimento de “mil milhões de euros” ao longo dos últimos 25 anos. Esse investimento, sustenta, tornou a gestão da água utilizada no regadio de uma enorme eficiência. “Não se desperdiça uma gota”, insiste.
Percorrendo os campos não se vê água em parte alguma. É preciso chegar a um dos canais que transporta para ali a água acumulada no reservatório de Riaño, e a um dos grandes depósitos que acumula parte dessa água, para que haja algum azul líquido a contrastar com o amarelo dos campos de sequeiro ou o verde dos hectares de regadio.
A água para a rega sai deste e de outros espaços idênticos, por canos subterrâneos ou à superfície e é depositada em cada campo na exacta medida em que será necessária, mediante as informações do sistema totalmente informatizado e que recorre a vários dados (incluindo de satélite), para garantir uma rega de precisão. “Há dez anos precisávamos de 12 mil metros cúbicos de água por hectare de milho; hoje, num ano como este, fazemos a rega com cinco mil metros cúbicos. E a produção aumentou em 20%”, garante.
Há outra coisa que esta agricultura moderna e lucrativa trouxe, garante: a fixação de população jovem, que antes fugia dali a sete pés. “Temos 64 povoados na área da comunidade e os dados populacionais são um horror. É muito difícil manter os jovens no campo e é o regadio que tem fixado a população. Os nossos regadios são regadios sociais, cumpriram o objectivo de manter cá os jovens e de incorporar mais gente no sector agrícola do que nos últimos 30 ou 40 anos”, explica David Llorente.
Mas se tudo isto se tem desenvolvido nas últimas décadas, o que aconteceu este ano para que mais de três mil agricultores fossem para a rua gritar contra o envio de água para Portugal, ao abrigo da convenção? O responsável da comunidade de regantes sintetiza: anualmente é fixada a quantidade de água a que os agricultores têm direito, vinda dos reservatórios do Esla, um afluente do Douro, e ela tem chegado. Ali, beneficiam da proximidade das montanhas e da neve que ainda se vai acumulando no Inverno.
O que David Llorente e Pablo Carbajal dizem é que os reservatórios de montanha, que alimentam depois os seus campos, não devem ser utilizados para a produção de energia eléctrica, mas ficar totalmente destinados às três áreas primordiais da água – dar de beber às populações, manter o caudal ecológico dos rios e regar campos e saciar os animais. “Estes reservatórios de montanha não podem entrar nas contas da convenção. Têm de ficar para a produção de alimentos”, insiste o secretário da comunidade, secundado pelo agricultor.
Ora, dizem, este ano, antes do final da campanha de rega, que termina a 30 de Setembro, foram confrontados com a retirada de água destes reservatórios para ser enviada para Portugal, cumprindo-se assim o volume de água que Espanha está obrigada a transferir para o outro lado da fronteira. E os agricultores – feitas as contas ao que lhes tinha sido atribuído e ao que gastaram – garantem que essa água era deles. Queriam deixar essa água de reserva para o caso de o Inverno não trazer a chuva necessária que garanta a rega do próximo ano. Foi a primeira vez, dizem, que se depararam com o anúncio de retirada de água desta dimensão. Protestaram e estão dispostos a agir judicialmente, se o Governo espanhol não iniciar negociações com Portugal para rever os parâmetros da convenção.
Em Zotes del Páramo, Hermínio Medina, presidente da Comunidade de Regantes do Baixo Páramo, descreve uma situação idêntica à dos colegas que estão a quase cem quilómetros de distância. Também ali se investiu muito na modernização, para que a rega de precisão fosse uma realidade, e os protestos em que também participou têm, para ele, uma razão simples: “Não há água que chegue. Se nos tiram esta, de que vamos viver?”
Mas se não há água, e se o que todos os dados indicam é que haverá cada vez menos na Península Ibérica, com secas e ondas de calor mais prolongadas, será sustentável insistir numa agricultura de regadio? Hermínio Medina olha fixamente em frente e responde com mais perguntas: “Se não é sustentável, porque apostaram nisto? Porque veio dinheiro de Bruxelas para emparcelamento de terrenos e modernização?”
Depois da manifestação de segunda-feira, o Governo espanhol disse que os parâmetros da Convenção de Albufeira têm de ser cumpridos, embora os agricultores de Leão garantam que foi já reduzida a água que viram sair dos reservatórios de Riaño e Porma. A luta, acreditam, está para durar e dizem que não se podem dar ao luxo de baixar os braços. “Sabemos que o nosso Governo deita a culpa para cima de nós, dizendo que somos os maiores consumidores de água, mas somos nós que fornecemos alimentos. Não estamos a gastar água, estamos a produzir alimentos e com menos água do que antes”, diz David Urquiza Llurente. E insiste: “Se for preciso, vamos para tribunal. A água é nossa.”