Solução para trabalho em plataformas digitais não está em linha com prática internacional
Proposta do Governo “introduz alguma dificuldade” no reconhecimento dos contratos, alerta a inspectora-geral do Trabalho, Fernanda Campos, desafiando os deputados a fazer alterações.
A solução encontrada pelo Governo para reconhecer o vínculo laboral das pessoas que trabalham em plataformas digitais não está em linha com a jurisprudência internacional, nem com as soluções que alguns países têm encontrado para o problema. A crítica foi feita por Fernanda Campos, dirigente máxima da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) em regime de suplência, durante uma audição no Parlamento a propósito do diploma que formaliza a Agenda do Trabalho Digno.
“Quanto às plataformas digitais e aos indícios de laboralidade, de facto a lei introduz uma triangulação na relação laboral que não vai em linha com aquilo que é e que tem sido a jurisprudência internacional”, disse a inspectora-geral nesta quarta-feira, em resposta a uma pergunta feita pelo Bloco de Esquerda.
“Sim, é um facto que os parceiros internacionais e a jurisprudência internacional têm considerado que as plataformas são quem controla e domina os vários aspectos da relação de trabalho”, disse a inspectora-geral, citada pela Lusa.
Na primeira versão da Agenda do Trabalho Digno previa-se a presunção da existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de actividade e o operador de plataforma digital, se verificassem um conjunto de indícios. Na nova proposta, que foi aprovada na generalidade e está a ser discutida no âmbito de um grupo de trabalho, o Governo faz uma alteração que, na perspectiva de alguns especialistas, pode ter resultados diferentes dos esperados.
Assim, prevê-se que a presunção de existência de contrato de trabalho far-se-á entre o “prestador de actividade e o operador de plataforma digital, ou outra pessoa singular ou colectiva beneficiária que nela opere”.
Esta solução levanta dúvidas. “Ao colocar este ‘ou outra pessoa singular ou colectiva’ pode dificultar muito mais o estabelecimento da presunção [de laboralidade com a plataforma]”, antecipou em declarações ao PÚBLICO Teresa Coelho Moreira, uma das autoras do Livro Verde que serviu de base à Agenda do Trabalho Digno.
A solução que está neste momento em cima da mesa, reconheceu igualmente a dirigente da ACT, “introduz alguma dificuldade” em todo o processo, desafiando os deputados a fazerem alterações à proposta de lei.
O Governo já se mostrou disponível para fazer ajustamentos à proposta de lei, de modo a garantir que o reconhecimento do contrato de trabalho não tira as plataformas da equação.
Comunicações à ACT devem ser revistas
Logo na abertura da audição Parlamentar, Fernanda Campos criticou também a solução encontrada em caso de despedimento dos trabalhadores durante o período experimental.
A proposta de lei obriga o empregador a comunicar à ACT a denúncia de contrato durante o período experimental, mas na perspectiva da inspectora-geral essas comunicações “não são solução”.
“É talvez um pouco anacrónico, pesa administrativamente e implica utilização de recursos que podem ser aplicados em inspecção”, disse.
E propôs um regime semelhante ao que é aplicado no despedimento por extinção de posto de trabalho. “A ACT, quando tem um pedido do trabalhador para verificar essa situação, tratar dele num prazo muito curto, dar o seu parecer e actuar em conformidade com os instrumentos legais”, sublinhou.
Do ponto de vista da dirigente, esta seria uma solução mais facilitadora “do que ter todas as comunicações na ACT e não ter recursos para as tratar ou estar a empenhar recursos naquilo que está correcto ou que não levanta questões às partes”, acrescentou.
Na audição, Fernanda Campos mostrou-se favorável à solução encontrada na proposta de lei quando estão em causa despedimentos ilícitos.
Na proposta inicial, a ACT podia suspender um despedimento ilícito, mas na versão que foi enviada ao Parlamento o Governo reformulou a ideia, criando um regime semelhante ao que é aplicado às falsas prestações de serviços (Lei 63/2013, que visa combater a utilização indevida de prestações de serviço).
Assim, quando identificar indícios de ilicitude num processo de despedimento, a ACT deve notificar o empregador para regularizar a situação e, caso isso não aconteça, participar os factos Ministério Público.
A solução é, para Fernanda Campos, “positiva”, pois permite que a ACT possa contribuir, numa primeira análise, para a resolução do problema, mas cabe aos tribunais tomar uma decisão.
A dirigente apresentou aos deputados um balanço da aplicação da Lei 63/2013, concluindo que o seu efeito tem sido positivo.
A inspectora-geral sublinhou que se tem assistido a um decréscimo do número de trabalhadores com relações de trabalho com características de trabalho subordinado em regime de prestação de serviços e que a regularização voluntária das situações por parte dos empregadores “é elevada”.
Em 2019, foram detectados 185 falsos recibos verdes e 118 trabalhadores acabaram por ser regularizados (63,8%); no ano seguinte, das 275 situações identificadas, 42,5% foram resolvidas voluntariamente pelas empresas; em 2021, a ACT identificou 115 contratos dissimulados e a taxa de regularização foi de 53,9%.
Em 2022, já foram detectados até agora 137 situações irregulares, 73 foram regularizadas e a ACT apresentou 14 queixas ao Ministério Público.
“A nossa percepção é que o procedimento é positivo e é uma primeira abordagem para resolver, ao nível administrativo, um aspecto muito importante do relacionamento laboral”, concluiu.