Especialistas avisam que passes baratos não estão a tirar carros das ruas
A propósito do Dia Europeu sem Carros, especialistas referem ao PÚBLICO que o programa de 2019, através do qual o Governo conseguiu baixar os preços dos passes de transporte público, não está a ser suficiente para reduzir o recurso ao automóvel — pois muitos continuam a ter poucos transportes perto de si.
Esta quinta-feira assinala-se o Dia Europeu sem Carros, em que a União Europeia reforça o alerta para a necessidade de reduzir o tráfego automóvel dentro das cidades, de modo a proteger o planeta e aumentar a qualidade de vida da população. Ao longo dos últimos quatro anos, o Governo português tem tentado promover a redução do recurso à viatura individual, sobretudo através do Programa de Apoio à Redução Tarifária nos Transportes Públicos (PART). Mas o facto de os passes de transporte público estarem agora mais baratos do que há uns anos não tem chegado para as pessoas poderem deixar o carro em casa. Isto, sobretudo porque a oferta dos transportes públicos portugueses continua a ser muito deficitária.
O arquitecto e professor universitário Avelino Oliveira é particularmente crítico do PART. “O programa foi bom para quem já andava de transportes e passou a poder poupar mais, mas não foi uma boa medida de atracção. Não tem aproximado dos transportes quem habitualmente anda de carro”, considera o especialista, docente na Universidade Fernando Pessoa, no Porto (licenciatura em Arquitectura e Urbanismo), e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa (licenciatura em Administração Pública e Políticas do Território).
Avelino Oliveira lembra números do Inquérito à Mobilidade nas Áreas Metropolitanas do Porto e de Lisboa, conduzido em 2017 pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Dois gráficos mostram que, tanto na Invicta como na capital, a supremacia da viatura individual face a outros meios de transporte é clara. Na Área Metropolitana do Porto, 67,6% dos inquiridos deslocam-se fundamentalmente de automóvel, com apenas 8,2% a optarem pelo autocarro, por exemplo. Na Área Metropolitana de Lisboa, o carro é o meio de transporte predilecto de 58,9% dos inquiridos, e apenas 8,8% andam regularmente de autocarro e 23,5% escolhem “modos suaves” de deslocação (andar a pé, bicicleta, trotinete, etc.).
Dados das edições de 2018 e 2019 do Anuário Estatístico da Mobilidade e dos Transportes, uma publicação do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), indicam que, em ambos esses anos, houve um aumento no número de passageiros transportados quer por modo rodoviário, quer por modo ferroviário, quer por modo fluvial. O número de passageiros transportados por modo rodoviário, por exemplo, passou de 514.832 em 2017 para 543.144 em 2018 e 565.911 em 2019.
Mas depois veio a pandemia, que afastou muitas pessoas dos transportes públicos. Num primeiro momento, porque o primeiro confinamento geral pôs uma fatia relevante da população em teletrabalho. Numa segunda fase, porque, com a reabertura gradual dos serviços, alguns tiveram medo de regressar imediatamente aos transportes colectivos.
Dados provisórios que foram divulgados esta terça-feira pelo Ministério do Ambiente e da Acção Climática, e que dizem respeito ao Metropolitano de Lisboa, à Metro do Porto e às empresas de transporte fluvial Transtejo e Soflusa, indicam que estas empresas estão a recuperar passageiros, mas a procura permanece aquém da verificada em 2019, quando a sua operação ainda não tinha sido afectada pela covid-19.
Entre o início deste ano e o final de Agosto, as empresas referidas transportaram 135.338 passageiros. Entre Janeiro e Agosto de 2019, tinham sido transportadas 175.561 pessoas – ou seja, o número de passageiros nos primeiros oito meses de 2022 representa apenas 77% da procura registada no período homólogo de 2019.
Por outro lado, dados da Associação Portuguesa das Sociedades Concessionárias de Auto-estradas ou Pontes com Portagens indicam que, em 2021, o tráfego nas auto-estradas nacionais ficou a somente 2% dos níveis registados em 2019.
Serviço imperfeito justifica primazia do carro
O facto de o carro ser muito mais popular do que os transportes públicos tem várias explicações, algumas das quais são relativamente evidentes. Há muitas regiões do país que, em termos de transportes públicos, estão muito mal servidas, contando apenas com autocarros ou comboios que não são frequentes. Para aqueles que trabalham num centro urbano e vivem numa zona porventura mais periférica da respectiva cidade, ir para o trabalho de transportes pode ser demorado, envolvendo um ou mais transbordos.
“Neste momento, já estamos num ponto em que os passes de transporte público são relativamente baratos — embora possamos dizer que não são tão baratos quanto isso, se olharmos para aquele que é o poder de compra do cidadão português —, mas não é por isso que os cidadãos não andam de transportes. É porque falta qualidade, tanto em termos de frequência como em termos de pontualidade, densidade e interconectividade”, diz Pedro Nunes, da associação ambientalista Zero.
Avelino Oliveira é da mesma opinião — e é em parte por isso que é tão crítico do PART. “Imagine que é alguém que, de segunda a sexta, tem de se deslocar entre os Carvalhos [em Vila Nova de Gaia] e o centro do Porto. Sem o PART, o passe mensal poderia ficar-lhe por 80 ou 90 euros. Como o programa não deixa que os passes custem mais do que 40 euros nas áreas metropolitanas, o PART paga a diferença às empresas de transporte público. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que o Estado está a usar o PART para pagar os transportes públicos e manter o sistema actual. Só isso.”
“Como é óbvio”, sublinha o arquitecto e professor universitário, o facto de as pessoas não precisarem de pagar tanto pelos seus passes mensais não é um ponto negativo. “O problema é que o PART está a ser vendido como um programa de incentivo à mobilidade verde, quando é apenas uma ferramenta de financiamento. O Governo não está a ser capaz de ter um documento estratégico para reforçar a adesão aos transportes públicos”, frisa. Defende que deveria existir “uma lei de bases da mobilidade” e descreve o PART como meramente “um programa que lava consciências”.
Países como a Estónia têm comprovado que o preço reduzido (ou até inexistente) dos passes não é suficiente para, por si só, fazer com que a população passe do carro para soluções menos poluentes. Em 2013, a capital Tallinn lançou um sistema no âmbito do qual começou a permitir que os cidadãos pudessem aceder aos transportes públicos gratuitamente. Nove anos depois, os especialistas questionam o aparente insucesso da medida. “Aquilo a que realmente assistimos em Tallinn foi que, em nove anos, o salto dos transportes públicos para os carros aumentou”, disse recentemente Mari Jüssi, especialista em mobilidade sustentável na Administração de Transportes da Estónia, à Euronews.
Pedro Nunes refere que, se Portugal quer descarbonizar com sucesso, o futuro tem forçosamente de passar por uma expansão ambiciosa das redes de transporte a nível nacional. Mas deixa um reparo: “Muitas vezes expandimos redes, mas não cuidamos de fazer funcionar bem a rede que já temos.” O especialista é crítico, por exemplo, do Metropolitano de Lisboa, uma empresa que, na sua óptica, está a trabalhar para prolongar as suas linhas, ao mesmo tempo que, neste momento, oferece um serviço com muitas falhas, como por exemplo tempos de espera bastante longos.
Apesar de Pedro Nunes sublinhar que “não podemos desincentivar o uso do carro através de medidas restritivas, se não oferecermos alternativas à população”, a Zero reconhece que gostaria de ver algumas cidades a promoverem, naquele que é o seu centro, “dias sem carros numa base semanal”. A medida, diz Pedro Nunes, teria um efeito não só “prático e mensurável”, como “pedagógico”: mostraria aos cidadãos que “as ruas ficam mais limpas e tranquilas, a qualidade do ar melhora e o ruído diminui”.