As contas irracionais na convenção que rege os rios de Portugal e Espanha

Mais do que rever a Convenção de Albufeira, que rege as relações entre os países ibéricos nos rios que partilham, é preciso distribuir a água de forma mais equilibrada ao longo do ano.

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A região de Pinhão, no Douro Nelson Garrido

É porque Espanha não distribui de forma regular ao longo do ano a água dos rios internacionais que tem de enviar para Portugal que agora, até 30 de Setembro, data do fim do ano hidrológico, terá de lançar “868 hectómetros cúbicos (hm3) [de água no Douro]”, como explicou a Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Essa medida suscitou protestos em Espanha e serve para cumprir o volume anual de água que tem de enviar para Portugal, ao abrigo da Convenção de Albufeira. Os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO concordam que estas grandes descargas não fazem sentido. Portugal, contudo, tem falhado, ao não definir os caudais ecológicos dos rios, desde que o convénio foi assinado, em 1998.

“Isto não é racional, não tem vantagem para Portugal que os espanhóis estejam a descarregar grandes quantidades de água. O volume anual que está definido devia ser libertado gradualmente ao longo do ano, e não à bruta no final”, considera António Gonçalves Henriques, especialista em hidráulica e ambiente, e director-geral da Agência Portuguesa do Ambiente entre 2007 e 2010.

Os agricultores espanhóis protestam, mas o que se passa, explica o professor do Instituto Superior Técnico (IST), é que o artigo 16.º da Convenção de Albufeira diz que ambas as partes, Portugal e Espanha, têm de definir os caudais necessários para a manutenção do bom estado das águas dos rios internacionais. Em 1998, quando foi assinada, não havia ainda informação suficiente para definir esses caudais, explica. Os volumes anuais de escoamento dos rios relativamente aos anos hidrológicos, que começam a 1 de Outubro e vão até 30 de Setembro, foram definidos, de forma provisória, num protocolo adicional, em 2008.

Mas em Portugal continuaram a vigorar esses valores provisórios. “Até hoje, não se definiu esses caudais em Portugal. Em Espanha já definiram os chamados ‘caudais ecológicos’ – o caudal necessário para manter o bom estado das águas, para o Tejo, para o Douro, para o Guadiana”, adianta António Gonçalves Henriques. “Nós temos estado um bocado, de uma forma simples de dizer, a dormir na forma. Devíamos ter feito este trabalho. Não são os espanhóis que o vão fazer por nós, temos de ser nós a impor isso”, considera.

“Se perguntarmos às entidades oficiais se está a ser cumprida a Convenção de Albufeira, dizem sim senhor, está a ser cumprida. Pois está, só que é de acordo com o protocolo adicional, que é provisório”, sublinha António Gonçalves Henriques.

Más contas ao longo do ano

“Nesta altura, o que acontece no Douro é que há uma parte do volume anual que ainda não foi garantido e, portanto, os espanhóis estão a descarregar à bruta, digamos assim, de forma a cumprir o que está no protocolo adicional”, explica. Mas o protocolo adicional também fala em caudais diários (no caso do Guadiana), semanais (Tejo, Guadiana e Minho) e trimestrais (em todos os rios que partilhamos com Espanha), e o enguiço começa aí. “O grande problema está em que são muito pouco exigentes. Até se podem respeitar os caudais trimestrais e os semanais, mas ficar longe do anual”, explica Francisco Ferreira, da associação ambientalista Zero.

Dá um exemplo para que se perceba melhor: “É como se eu dissesse que por semana tem de me dar um litro de água, mas num ano tem de me dar 200 litros. Só que se todas as semanas dou um litro, ao fim de um ano dá só 52 litros – mas o pedido anual é de 200 litros.” Isto significa que os caudais, que são diários, por semana ou trimestrais, se somados, ficam abaixo do valor estipulado para o ano todo. O resultado é que no fim do ano hidrológico Espanha tem uma dívida de água para pagar a Portugal, e por isso faz estas grandes descargas em poucos dias.

Os resultados deste comportamento são bem visíveis no Tejo, por exemplo. “Vemos os agricultores do Tejo e os próprios ecologistas da zona a queixarem-se de que o rio não tem água, e de facto não tem, porque durante muito tempo as barragens estão fechadas, e o protocolo adicional permite isso. Não há passagem de caudal, mas de repente os espanhóis largam uma quantidade enorme de água para cumprir o estipulado”, exemplifica António Gonçalves Henriques.

Este ano pode ter sido mais notório no Douro do que o habitual. “Como foi um ano seco, os espanhóis estiveram a aguentar, a aguentar, a aguentar, até agora, quando têm de descarregar tudo, para cumprir o que está no protocolo adicional”, diz António Gonçalves Henriques.

Mas porquê? Espanha poderá ter estado à espera que, neste ano de grande seca, o Douro atingisse “o limiar mínimo, que também está definido nesse protocolo adicional, em que se considera um regime de excepção. E no regime de excepção eles não têm de fazer a descarga dos caudais”, explica o professor do IST.

“Espanha pode beneficiar de ter tido as albufeiras mais cheias durante o Verão, mesmo que estejam em níveis relativamente reduzidos. O que é facto é que se Espanha fizesse essa repartição mais ao longo do tempo, as albufeiras agora estariam obviamente mais vazias”, salienta Francisco Ferreira.

E do lado de lá da fronteira é precisa água para alimentar uma agricultura intensiva, salienta. “Espanha é extremamente ciosa do seu caudal por causa da agricultura. Não é apenas a seca”, sublinha Francisco Ferreira.

É preciso renegociar?

Visto isto, faria sentido negociar a revisão o tratado que rege a gestão dos rios internacionais portugueses e espanhóis? “A Convenção de Albufeira é acompanhada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, como convenção internacional que é, e não pelas autoridades do ambiente”, salienta Rui Godinho, presidente da Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas (APDA). “Esta é uma questão diplomática complicada”, acrescenta.

“A minha opinião é que não há necessidade de rever a convenção. Permanece válida. Aquilo que temos de fazer é o nosso trabalho de casa, fazer aquilo que diz o artigo 16.º. Portugal deve dizer a Espanha quais os caudais que achamos que precisamos de ter cá para manter o bom estado das águas”, afirma António Gonçalves Henriques.

Francisco Ferreira reconhece que não há grande vontade de Portugal em mexer no texto da convenção. “Teme-se que seja uma caixa de Pandora, e que, abrindo a convenção, não só os espanhóis não cederão, como isso pode vir a ser prejudicial a Portugal”, observa. Mas não tem de ser assim: “Se não se mexer nos volumes de água que estão em jogo, mas acrescentarmos uma forma de distribuir o caudal anual de forma mais equitativa, quando não estivermos em regime de excepção, isso já nos deixava muito satisfeitos”, diz o dirigente da Zero.

“É preciso desenvolver a hidrodiplomacia, a diplomacia relativa às reservas e gestão da água. É preciso pôr isto na agenda política, e não tem estado. É fundamental ir tentando criar massa crítica na opinião pública de que a gestão da água é seguramente um dos problemas políticos mais sensíveis e mais delicados das próximas décadas”, conclui Rui Godinho.