O preço da representatividade

É extremamente ingénuo acreditar que empresas como a Disney ou a Amazon fazem adaptações de personagens em nome da inclusão ou de uma qualquer política woke.

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Arondir, da série "The Rings of Power" DR

Parece que o mundo ocidental está a acordar para a existência de uma variedade bastante volumosa de seres humanos neste planeta que não se encaixam nos padrões da fantasia ariana. Algo indiscutivelmente positivo e que, obviamente, tem obtido cada mais destaque nas artes, na sociedade em geral e, como não, na cultura pop. Essas mudanças criaram, actualmente, duelos mortais nas redes sociais entre indivíduos pró e anti-alterações. Progressistas e conservadores digladiam-se para afirmarem a sua hegemonia moral e ideológica, com ameaças de boicotes e apoio incondicional pelo meio. O mais interessante disto? É tudo calculado.

É extremamente ingénuo acreditar que empresas como a Disney ou a Amazon fazem adaptações de personagens em nome da inclusão ou de uma qualquer política woke. Vale a pena lembrar que a Disney é a mesma empresa que criou o filme The Song of The South (1946), o gato chinês que toca piano com dois pauzinhos em The Aristocats (1970), os corvos “negros” na versão original de Dumbo (1941), entre outras figuras, filmes e personagens que marcam a longa história de racismo e utilização do estereótipo pela multinacional norte-americana.

Sobre a Amazon, creio que nem é preciso lembrar as polémicas em que trabalhadores denunciaram o facto de serem tratados que nem gado em exploração intensiva. Então, qual é o objectivo destas empresas em dar tanto foco à inclusão? O lucro. Toma-se uma personagem ou história bem enraizada no imaginário colectivo com um forte toque de nostalgia , transforma-se dando enfoque à representatividade e modernidade e cria-se o conflito. Dando origem a que um grupo de velhos do Restelo se revolte dramaticamente contra as mudanças efectuadas numa personagem que é metade peixe – expondo o seu racismo interior pelo caminho – e trazendo à tona a vontade de defender estas produções até à morte por parte da grande parte dos jovens ocidentais, que se apresentam como liberais.

E isto leva a que os filmes e séries se vendam sozinhos, bastando criar algo visualmente bonito, dar asas ao progresso versus tradição e dormir a sesta. Gostaria de falar da personagem Arondir da série The Rings of Power (2022). É a personagem mais “élfica” de toda a série e é muito bem representado por Ismael Córdova. Possui os rasgos psicológicos dos elfos de Tolkien: ar arrogante, mas de certa forma piedoso; sentido de justiça acima de todas as outras espécies; amor pela natureza ao ponto de chorar por uma árvore; etc. No entanto, ninguém lhe conhece sequer o nome ou as suas características; todo o foco é posto na cor da pele do actor, destituindo-o da sua individualidade. Toda a gente esqueceu completamente o elfo Arondir.

E, vendo de outra perspectiva, a personagem serve também como escudo contra qualquer crítica, ou seja, dá-se muito foco desde sempre, através do marketing da série, ao tom de pele do actor, servindo isso para que mesmo quando alguém usa um argumento válido para demonstrar que a série é completamente vazia, seja acusada de racista. O racismo é, assim, usado, através da chantagem emocional e moral, como um simples meio de fazer dinheiro, sem importar nem por um momento tudo o que significa. E, enquanto isso, Jeff Bezos arranja mais uns trocos para ir dar umas voltas ao espaço.

A representatividade é necessária e muito bem-vinda, mas é preciso que seja feita com respeito e vendo os alvos dessa inclusão como seres humanos e não como terminais multibanco ou animais exóticos. Não se pode passar a ideia de que pessoas racializadas não servem como heróis ou modelos por si próprias, sendo preciso adaptar uma figura branca ficando aqui presente o velho conceito de “bolacha Oreo”. Por fim, se não gostarem mesmo nada dessas novas adaptações, sempre podem ver ou ler as versões originais. Mas se o que vos importa é pura e simplesmente a cor de pele dos actores ou personagens, tentar ler um pouco mais e conhecer pessoas fora da vossa bolha talvez ajude.

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