Morreu Javier Marías, um dos maiores escritores espanhóis do nosso tempo
O autor de Coração tão Branco ou Todas as Almas não resistiu a uma pneumonia. Tinha 70 anos.
O escritor espanhol Javier Marías morreu este domingo em Madrid, aos 70 anos. Considerado um dos maiores romancistas espanhóis do nosso tempo, não sobreviveu a uma pneumonia que o deixara em coma há mais de um mês. A notícia da morte foi dada pelo ABC, que cita fontes familiares do autor de Coração tão Branco.
Na crítica a Tomás Nevison, o seu último romance, publicado originalmente em 2021 e que teve tradução portuguesa em 2022, pela Alfaguara, José Riço Direitinho escrevia no Ípsilon que, para Javier Marías, a literatura “funciona sempre como um forma de se chegar ao conhecimento”, algo a que o escritor se entregava numa prosa “introspectiva”, “bastante digressiva e heterodoxa”, através da qual, “aos poucos”, se tornava clara “mais uma tentativa de compreender o mundo”.
Com a morte inesperada do escritor, membro da Real Academia Espanhola, eterno candidato ao Nobel — “Não vejo motivo para que me dêem ou não. Não é coisa que me preocupe. Não o desejo nem o espero”, dizia em 2019 ao Ípsilon —, Tomás Nevison, sequência do também muito celebrado Berta Isla (2017), torna-se inadvertidamente a despedida literária de um autor que nasceu rodeado pelas letras: a mãe, Dolores Franco, era escritora, o pai, figura determinante no seu percurso e a quem dedicaria nos anos 2000 o romance em três volumes O Teu Rosto Amanhã, era o filósofo Julián Marías Aguilera; e durante o período que, na infância, passou nos Estados Unidos, a família tinha como vizinho Vladimir Nabokov.
Como disse certa vez Arturo Pérez-Reverte, citado no obituário do ABC, “eu queria ser Tintin, e Javier queria escrevê-lo”. Javier Marías começou a escrever aos 11 anos para, dizia, “continuar a ler aquilo de que gosto”. O primeiro romance, A Véspera, que nunca chegou a publicar, concluiu-o aos 15. Estávamos em 1966, a cinco anos de Los Domínios del Lobo, a primeira obra publicada, a vinte e três de Todas as Almas, romance que considerava seminal na sua obra e que, escrevia Isabel Lucas numa entrevista ao Ípsilon em 2019, quando da reedição portuguesa (a primeira tradução tivera prólogo de António Lobo Antunes), inaugurava “alguns dos seus temas recorrentes: a espionagem, a intriga académica, uma reflexão sobre o tempo e o lugar”.
Javier Marías nasceu a 20 de Setembro de 1951, em Madrid. Os primeiros tempos, viveu-os entre mundos, entre a Espanha natal e os Estados Unidos, onde o pai leccionava em várias universidades. A marca inicial do seu percurso faz-se também em digressão. O primeiro romance, o supracitado Los Domínios del Lobo, completa-o em Paris, cidade onde escreve, vai ao cinema, toca guitarra nas ruas para garantir sustento. Um quotidiano bastante distante, imagina-se, do universo da espionagem e do mundo académico que, mais tarde, atravessariam a sua obra. De qualquer modo, os seus espiões não são necessariamente as personagens de thriller que associamos ao género. “Tenho um artigo muito antigo que falava da figura do espião como equivalente à do romancista. Alguém que tem de estar a inventar, a deduzir, a interpretar”, disse ao Ípsilon. “É um mundo no qual se acentuam temas que me interessam: o engano, a traição, o desengano, o poder, a verdade ou a mentira, a impossibilidade de não saber nunca nada com segurança. São coisas que também estão na vida de todos”.
Apesar da presença traços autobiográficos na sua escrita, não lhe interessava a autoficção e, como chegou a dizer ao New York Times, tinha a esperança de que ninguém se desse ao trabalho de lhe escrever a biografia. “Não vejo interesse. Não tive uma vida particularmente especial, aventureira”. A sua aventura era escrita como possibilidade de descoberta, de uma mais fiel apreensão da realidade.
"Traduzir, traduzir, traduzir"
Nos anos 1970, a literatura concorre com outras actividades. Publica nessa década o supracitado Los Dominios del Lobo (1971), Travesía del Horizonte (1972) e El Monarca del Tiempo (1978), completa os estudos de Filologia Inglesa — os anos 1980 são de intensa actividade académica, enquanto professor em Oxford, onde, através de colegas académicos, que eram também espiões, aprendeu sobre os meandros da espionagem, Londres, Boston e Veneza —, inicia actividade enquanto articulista na imprensa, arrisca a escrita de guiões cinematográficos para os primos cineastas Jesús e Ricardo Franco, traduz os clássicos. A tradução, de resto, continuará a ocupar parte do seu tempo até à entrada no século, vertendo para castelhano Conrad, Yeats, W. H. Auden, Faulkner, Nabokov ou o Tristram Shandy de Laurence Sterne. Marías não acreditava que cursos de escrita criativa ajudassem quem quer fosse a tornar-se escritor: “Se eu tivesse uma escola dessas, a única coisa que aconselhava aos alunos era que traduzissem. Traduzir, traduzir, traduzir. É a melhor maneira de aprender a escrever, além de ler.”
Os anos 1980 serão os da afirmação, aqueles em que publica El Siglo (1982), O Homem Sentimental (1986) e o decisivo Todas as Almas (1989), que seria publicado em Portugal no ano seguinte, pela Quetzal, e, no qual, escreve María José Solano no ABC, “destila já um território pessoal muito reconhecível: um falso romance autobiográfico permite-lhe construir um verdadeiro relato autobiográfico, sem que pareça tal, num ambiente inquietante e, por vezes, cómico”.
A década de 1990, por sua vez, será a da confirmação. Coração tão Branco (1992) ergue-o a figura cimeira entre os romancistas espanhóis e traz-lhe reconhecimento internacional. Amanhã na Batalha Pensa em Mim (1994) e Negras Costas do Tempo (1998) cimentam o estatuto. Para o protagonismo público contribui também a actividade de cronista que continuou a desenvolver na imprensa, em particular com uma coluna semanal no El País que manteve durante duas décadas — a última, Cuento del professor Pírfano 6, foi publicada a 29 de Julho. Na sua bibliografia, de resto, encontramos várias colectâneas de artigos que foi publicando ao longo da vida, como Paixões Passadas, Literatura e Fantasma ou Selvagens e Sentimentais.
Traduzido em 46 línguas em 59 países, foi distinguido com dezenas de prémios literários mundo fora — de Espanha, naturalmente, ao Chile, de Itália à Irlanda. Membro da Real Academia Espanhola, tal como o fora o seu pai, recusaria em 2012 o Prémio Nacional de Narrativa promovido pelo ministério da cultura de Espanha. “Estou a ser coerente com o que sempre disse, que nunca aceitaria um prémio institucional”, justificou. “Recusei todas as remunerações que provenham do erário público”.
Com muita da sua obra (tanto os romances, como os contos e as colectâneas de artigos) publicada em Portugal, onde é editado há muitos anos pela Alfaguara, Marías fora eleito em Dezembro do ano passado membro da britânica Royal Society of Literature, reconhecimento do seu prestígio internacional e, também, da influência que teve em si a literatura inglesa.
Para Javier Marías, a quem chegaram a chamar “o menos hispânico dos escritores espanhóis”, a língua em que se escreve não era, porém, determinante. “Alguém que traduz e que acredita que tudo se pode traduzir, que é uma questão de talento, de paciência, dá-se conta que as línguas são importantes, mas são um elemento secundário”, disse ao Ípsilon. “Proust poderia ter escrito em italiano, quem sabe em inglês. Cervantes poderia ter escrito em inglês e a prova é que os seus maiores seguidores são de língua inglesa”.
No princípio e no fim de tudo estava, em Marías, o desejo de compreender, de encontrar sentido. Não nele, mas no mundo que viveu, que observou, que escreveu ao longo de 70 anos. “Ao escrever, e concretamente ao escrever romances, penso melhor do que se estiver sentado numa cadeira a olhar para o tecto. A própria dinâmica de construir uma história, uma arquitectura, ajuda a pensar melhor sobre as coisas. Suponho que é por isso que continuo a escrever”, dizia, antes de rematar: “Não para me conhecer a mim mesmo; eu não interesso nada”.