Alain Tanner (1929-2022): o cineasta que fez de Lisboa A Cidade Branca
Com um total de mais de uma vintena de filmes, Alain Tanner começou a sua carreira no final dos anos 1950.
Inevitavelmente, tudo o que se possa escrever sobre o suíço Alain Tanner, falecido este domingo aos 92 anos de idade, passará sempre pela sua relação com Lisboa.
Em 1982, por desafio do produtor Paulo Branco, veio à capital portuguesa rodar A Cidade Branca, história de um marinheiro (Bruno Ganz) de passagem pela cidade e que se deixa apaixonar pela luz e pela vida lisboeta, com a fotografia do português Acácio de Almeida a “selar” um olhar sobre a cidade indissociável de um tempo e de um espaço muito particulares.
Tanner não era desconhecido do público português, mas A Cidade Branca, apreciável êxito de público e de crítica que vira estreia no festival de Berlim de 1983, tornar-se-ia na “marca-registada” de um cineasta cuja colaboração com Portugal não ficaria por aqui.
O encontro com Paulo Branco prolongar-se-ia por mais sete títulos feitos com o produtor ao longo das duas décadas seguintes, um dos quais o voltaria a trazer à capital: Requiem (1998), adaptação de Antonio Tabucchi inspirada pelos heterónimos pessoanos.
Se é verdade que antes de Tanner nunca se tinha filmado assim Lisboa – e que o próprio realizador diria ao PÚBLICO em 2017, aquando de uma retrospectiva que lhe foi dedicada pelo LEFFEST, considerar A Cidade Branca como o seu filme preferido de entre as duas dezenas que dirigiu – seria injusto reduzir o cineasta nascido em Genebra em 1929 a um único título.
O último a rir
Com Claude Goretta, Jean-Jacques Lagrange, Michel Soutter e Jean-Louis Roy, Tanner criou o Groupe 5, colectivo de cineastas de expressão francesa com larga experiência de televisão, apostados em abrir novas portas ao cinema suíço entre 1968 e 1973.
Trabalhou com o historiador de arte John Berger (que co-assinou os argumentos de A Salamandra, de 1971, ou Jonas que Terá 25 Anos no Ano 2000, de 1976), e dirigiu actrizes e actores como Miou-Miou, Bulle Ogier, Juliet Berto, Laura Morante, Jean-Louis Trintignant, Trevor Howard, ou as portuguesas Teresa Madruga, Zita Duarte ou Maria Cabral.
Foi o Maio de 1968, que viveu e filmou em directo em Paris para a televisão suíça, que alimentou muito do seu cinema, a começar pela sua estreia na longa-metragem de ficção: O Último a Rir (1969), história de um industrial burguês que vira as costas à sua vida confortável, venceu o festival de Locarno (que lhe daria em 2010 um galardão de carreira).
Foi o início de uma carreira prestigiosa que o viu tornar-se em presença regular do circuito de festivais (venceria ainda o Grande Prémio do Júri em Cannes por Os Anos de Luz, em 1981), e num dos verdadeiros “embaixadores” do cinema suíço - coisa que o próprio Tanner considerava que “se calhar” não existia, visto vir de um país onde “dois terços da população não falam a mesma língua do outro terço”.
Filho de pai suíço e mãe americana, oriundo da média burguesia, Tanner era contemporâneo da geração da Nouvelle Vague francesa, mas a sua vida parecia vir de outros tempos. Apaixonado pelo jazz e surrealismo, recusou o conforto familiar para ingressar na Marinha mercante aos 22 anos e viajou por todo o mundo.
O seu desejo de fazer cinema, que descobriria a sério nos anos 1950 com o neo-realismo italiano, levou-o primeiro a Paris e em seguida a Londres, onde conheceu os realizadores do movimento inglês Free Cinema.
No livro de memórias que publicou em 2007, Ciné-mélanges, Tanner expressava a sua dívida a Lindsay Anderson, autor de Um Homem de Sorte ou If… e um dos nomes-chave daquele movimento, que lhe deu a possibilidade de assinar uma primeira curta-metragem com o seu compatriota Claude Goretta, com quem criara um cineclube universitário: Nice Time (1957).
Tanner foi um dos raríssimos cineastas helvéticos a terem distribuição regular nas salas portuguesas, com títulos como A Salamandra, Regresso de África (1973), O Centro do Mundo (1974) ou Fogo no Coração (1987).
Tempos de revolução
A revelação entre nós do seu cinema feito no “espírito do tempo” que se vivia – um cinema que era, para ele, “abertamente ideológico” – coincidiu com os novos ventos de liberdade do pós-25 de Abril.
Em particular, Jonas que Terá 25 Anos no Ano 2000 e o seu olhar sobre o que restava desses tempos de revolução tocou toda uma geração, chegando a ser considerado pelo seminal crítico francês Serge Daney como um dos raros filmes que souberam reflectir sobre, e aprender com, os acontecimentos do Maio de 1968, de um modo que nem o próprio cinema francês alcançara.
Cineasta genuinamente independente, que financiou total ou parcialmente toda a sua obra, Tanner anunciou publicamente a sua retirada do cinema aos 75 anos, com a estreia de Paul s’en va (2004).
Em entrevista de época ao jornal Le Figaro, dizia estar cansado de procurar financiamentos e de fazer a promoção dos seus filmes: “Tive sorte até hoje. Graças ao sucesso internacional de A Salamandra, do qual não estava à espera, pude produzir os meus 21 filmes e manter-me completamente independente artisticamente. Hoje é cada vez mais difícil arranjar meios para concretizar sonhos.”
Não voltaria a assinar outra longa-metragem até à sua morte, ocorrida este domingo aos 92 anos de idade e anunciada pela Associação Alain Tanner em estreita colaboração com a família do cineasta.