Brasil: pastagens secas fizeram com que o leite ficasse mais caro que a gasolina
Havendo menos forragem para o gado, a produtividade das vacas diminui e a alimentação animal tem de ser compensada com rações. Os custos de produção disparam e repercutem-se no valor final do leite no Brasil, que em São Paulo chegou a ultrapassar o da gasolina.
O preço do litro de leite no Brasil subiu vertiginosamente nos últimos meses, chegando mesmo a superar o valor do litro de gasolina em cidades como São Paulo. Esta tendência, que parece agora começar a inverter-se, foi em parte impulsionada por pastagens demasiado secas. Havendo menos forragem para o gado, a produtividade das vacas diminui e a alimentação animal tem de ser compensada com rações, cujo preço também aumentou durante a pandemia. Assim, os custos de produção disparam e repercutem-se no valor final do produto.
“O clima influencia a produção de toda a agro-pecuária, inclusive o leite. Neste ano, no Brasil, tivemos um problema na oferta de leite por causa de uma seca que ocorreu no Sul do país e que, somado a outros factores, elevou substancialmente o preço do leite”, explicou ao PÚBLICO Rubens Neiva, técnico de comunicação especializado em gado e leite da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-pecuária (Embrapa).
Dados da Agência Nacional do Petróleo, citados pelo site noticioso UOL, indicam que a gasolina estava a ser vendida em Agosto por um preço médio de 5,40 reais (cerca de um euro), ao passo em que um pacote de leite em São Paulo poderia custar quase oito reais (1,55 euros). O valor da bebida varia muito consoante a cidade, sendo que o país tem mais de 5500 municípios.
Não existe um índice nacional do leite no Brasil. Contudo, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 15 de Agosto, divulgado há duas semanas, indica que entre Janeiro e Agosto de 2022 o leite teve aumento de 79,79% ao passo que a gasolina caiu 14,91% em igual período.
“O resultado do grupo alimentação e bebidas (1,12%) foi influenciado principalmente pelo aumento nos preços do leite longa vida [pacote de leite pasteurizado] (14,21%), o maior impacto individual positivo no índice do mês, com 0,14 p.p. [pontos percentuais]. No ano, a variação acumulada do produto chega a 79,79%”, lê-se no documento do IPCA.
Paralelamente à subida do preço do leite, houve uma descida do preço do combustível. Analistas ouvidos pela Folha de São Paulo sugerem que a queda do valor da gasolina está associada à redução de impostos no sector. Segundo o periódico brasileiro, este tecto fiscal foi validado no final de Junho por Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, “que tenta conter a pressão inflacionária e melhorar sua popularidade nas vésperas das eleições”. A petrolífera brasileira Petrobrás, por sua vez, reduziu os preços nas refinarias. A empresa estatal anunciou dia 15 de Agosto um novo corte consecutivo.
Insegurança alimentar
“O aumento do preço do leite pode impactar ainda mais a situação de insegurança alimentar brasileira. Hoje no Brasil 33 milhões de pessoas estão com algum grau de insegurança alimentar”, afirma a nutricionista Ana Laura Brandão, investigadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.
Face ao aumento do preço da bebida, muitos consumidores voltaram-se para opções mais baratas como o soro do leite. Este produto consiste no líquido que sobra da produção de queijos e que, por ser aguado e ter menor valor nutricional, tende a ser desvalorizado comercialmente. Agora, o soro do leite está nas prateleiras dos supermercados brasileiros.
“O acesso à aquisição de alimentos está dificultado e [há] opções que não possuem qualidade nutricional adequada que acabam sendo uma opção para muitas famílias. Isto tem um impacto nutricional, podendo agravar casos de desnutrição infantil, [provocar] carências nutricionais e atrapalhar o desenvolvimento das crianças”, diz Ana Laura Brandão, que possui um doutoramento em saúde pública.
A fome é uma realidade é voltou a bater à porta dos brasileiros. Os tais 33 milhões ameaçados pela insegurança alimentar equivalem a “uma população do tamanho do Peru”, observa Marcele Paiva, professora do Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A médica afirma ao PÚBLICO que já há recolha de alimentos nos centros de saúde. “Há muitos relatos. As pessoas vão às unidades básicas de saúde e uma das principais queixas é a fome”, acrescenta Ana Laura Brandão.
O que fez disparar os preços?
A produção leiteira envolve uma intrincada cadeia composta por diferentes agentes e recursos. O preço final de um pacote de leite depende, por isso, de um conjunto de factores como a quantidade de chuva que cai entre as colheitas, a disponibilidade de forragem, o preço das rações animais, dos fertilizantes e do gasóleo.
As pastagens mais secas, que condicionaram a oferta do leite no mercado, são apenas um dos factores que contribuiu para a subida do preço do leite e derivados no Brasil. A invasão da Ucrânia pela Rússia, por exemplo, perturbou a oferta de produtos que têm um papel relevante na cadeia produtiva do leite – é o caso dos fertilizantes, cujos preços também dispararam este ano, trazendo grande instabilidade para o sistema alimentar global. Os adubos industriais desempenham um papel importante na produção de alimento do gado.
O sector da energia também afecta o preço dos alimentos. O gasóleo é o principal combustível usado no sector agrícola – se o valor deste combustível sobe, isto terá uma repercussão no custo de preparação do solo, plantio e colheita. Todas estas etapas são necessárias para a gestão pecuária e produção de leite. O transporte da bebida do local de produção até à indústria e aos centros de distribuição também influenciam o custo de produção.
A boa notícia para os brasileiros é que, com a chegada da Primavera (e das chuvas) no hemisfério Sul, espera-se que haja um aumento da disponibilidade de pastagens para animais. A expectativa é que o aumento da forragem permita o aumento da produção da bebida e contribua para o recuo dos preços no sector. A avaliação do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada é a de que a cotação média do litro de leite no mercado grossista, pelo menos em São Paulo, já caiu 17% durante a primeira quinzena de Agosto.
O Brasil é o terceiro produtor mundial de leite, num ranking liderado pelos Estados Unidos e pela Índia.