Serão as bagas-corvo o segredo para uma migração de seis mil quilómetros, sem paragens?

Camilo Carneiro passou os últimos cinco Verões na Islândia, em trabalho de campo para estudos sobre os maçaricos-galegos. Neste momento anda a tentar perceber como é que os recursos alimentares das planícies do Sul do país influenciam o crescimento e resistência da espécie

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Nuno Ferreira Santos

Camilo Carneiro avisa-nos para estacionarmos o carro e seguirmos no dele. “Isto às vezes pode ser um bocado caótico”, justifica. Está sol, as temperaturas máximas anunciam 17 graus Celsius e vamos para uma vasta planície verde em Fljótshlíð, em busca de crias de maçarico-galego (Numenius phaeopus), o objecto de estudo do investigador português na Islândia. A justificação deixa-nos intrigados, mas isso é porque ainda não começamos a assistir a um dia normal de trabalho de campo do biólogo.

Se quer cumprir os objectivos que o levaram ali, a Camilo Carneiro não bastam os conhecimentos académicos que adquiriu no Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro. Tem também de saber correr. Correr suficientemente rápido para impedir que as crias de maçarico-galego se apercebam da sua presença e intenção de as agarrar (ainda que por alguns minutos) e fujam, tornando-se invisíveis na paisagem. Às vezes, ele é bem-sucedido. Outras nem por isso.

Tal como José Alves, que orientou o seu doutoramento, Camilo Carneiro não vive permanentemente na Islândia. Começou a ir para lá no Verão de 2015, para estudar estas aves, e continua pelo país agora, já no âmbito de um pós-doutoramento iniciado no ano passado na Universidade da Islândia. Se quiser continuar, quando este trabalho de três anos terminar, terá de desenvolver um novo projecto e esperar que ele seja aprovado e financiado.

Para já, contudo, entre o início de Maio e o final de Agosto, tem os dias todos praticamente ocupados com saídas de campo, em busca das crias de maçarico-galego. “Estou a investigar as interacções tróficas, entre as crias desta espécie e como diferentes recursos alimentares podem influenciar o seu crescimento e desenvolvimento. Isto é parte do projecto [de pós-doutoramento], a segunda parte é, quando elas começam a voar e passado algumas semanas migram, tentar perceber como essa migração acontece, a sua primeira migração da vida, que eventualmente vão repetir durante décadas. Passo praticamente o Verão todo na Islândia. As aves não estão a nidificar durante esse tempo todo, mas começo a encontrar os primeiros ninhos, preciso de encontrar muitos ninhos para seguir muitas famílias e muitas crias depois disso. Nesta altura, basicamente todos os dias são passados no campo, a encontrar e reencontrar as crias para, precisamente, conseguir descrever o crescimento individual de cada uma delas”, explica.

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Este Verão está a correr bem. Camilo Carneiro encontrou mais de cem ninhos e muito poucos foram alvo de predadores. Tem, por isso, muito que correr. De binóculos em punho, e apoiado pela namorada e também bióloga, perscruta o horizonte, fixando a sua atenção nos locais onde sabe que existem ninhos. De vez em quando um dos dois diz “Vejo uma cria” e começa a tentativa para as apanhar. Quando é preciso que tal aconteça.

Às vezes ainda encontra recém-nascidos, que estão quietinhos. A primeira cria que encontramos com o investigador acabou de nascer e ainda está no ninho. Ao seu lado, três ovos já apresentam buracos nas cascas, mas os maçaricos continuam lá dentro. O processo, desde a primeira marca na casca do ovo até que a cria se liberte dessa protecção, pode demorar entre dois a quatro dias. Por isso, Camilo Carneiro sabe que terá de regressar ali rapidamente.

Nem todas as crias avistadas pelo par são capturadas. Mas o biólogo consegue recuperar pequenos maçaricos em várias fases de crescimento - além do recém-nascido, recolhe duas outras crias, com cinco ou seis dias de vida, outra com oito e uma outra com 18 dias. Aos 27 dias estão prontas para voar e, pouco depois, iniciam uma longa migração, sem paragens, entre a Islândia e a costa Ocidental de África, onde vão passar o Inverno. São cerca de seis mil quilómetros realizados em cinco dias e cinco noites. Como é que o conseguem? O trabalho de Camilo Carneiro pode ajudar a responder a isso.

Bagas e invertebrados

O investigador português está particularmente interessado na relação entre o crescimento das aves e os recursos alimentares que se encontram nestas planícies do Sul da Islândia, especialmente uma pequena baga escura, a Empetrum-negro (baga-corvo), em que ainda não reparámos, mas que, assim que lhe prestamos atenção, percebemos que cobre grande parte do terreno em que estamos, em arbustos rasteiros que atapetam o solo. Por isso, Camilo Carneiro não se limita a recolher crias de maçarico-galego, a cada três dias, a medi-las, tirar amostras de sangue e da penugem, e anilhá-las, quando têm tamanho suficiente.

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Neste terreno privado onde nos encontramos, instalou também cinco redes em cinco pequenas áreas, para contar as bagas que ali crescem, e pequenos invólucros para tentar perceber a abundância de invertebrados que a planície alberga neste Verão, e que também são alimento das aves. “Se quero ligar o crescimento aos recursos alimentares, preciso de recolher informação sobre estes recursos, e isso passa por amostrar invertebrados, que são parte da sua dieta, mas também por registar o desenvolvimento e abundância de Empetrum-negro, que é, aparentemente, um recurso alimentar também importante. Ainda desconhecemos essas interacções, sabemos que existem, mas não sabemos qual o grau e força que têm. São esses aspectos que estou a estudar”, explica.

E os resultados, acrescenta, “poderão ajudar a prever o que poderá acontecer a esta população”. Na Islândia, como noutros locais, a Primavera tem começado um pouco mais cedo e há várias espécies que estão a responder a essa alteração, principalmente de invertebrados, diz o investigador, que também “adiantam a sua fenologia”. Ou seja, desenvolvem-se mais cedo. “Isto tem implicações para as espécies de aves migradoras que vêm para estes locais e que, quando respondem [a estas mudanças], não o fazem de forma tão rápida”, diz.

Mas no caso dos maçaricos-galegos essa resposta parece não estar a acontecer. Não estão a adiantar a migração e a chegar mais cedo, ao contrário de outras limícolas. “A população está estável e não está a alterar as suas datas [migratórias], o que é um bocado contra-intuitivo. Se as coisas se estão a alterar à sua volta, como é que esta população se mantém sem responder a essas alterações? O que achamos é que existe alimento suficiente na Islândia para as crias e, portanto, os adultos não têm uma pressão para alterar o seu comportamento”, diz o investigador.

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"Recurso-chave"

O seu trabalho pode ajudar a esclarecer se esta hipótese é correcta. E também a partir de que ponto é que uma alteração nos recursos alimentares disponíveis pode “causar um problema” a esta população. “E com este conhecimento, se calhar também conseguimos perceber como outras populações em áreas semelhantes poderão responder a isso”, acrescenta. Além disso, ele quer tentar perceber se as bagas-corvo são o “recurso-chave” que permite aos maçaricos-galegos fazerem uma migração tão longa e sem paragens. São muitas perguntas ainda a precisar de resposta. Sobretudo, muitas perguntas para responder em apenas três anos.

Camilo Carneiro diz que “não é ingénuo” para acreditar que no final do pós-doutoramento terá à sua espera uma oferta de trabalho estável na Islândia. Embora isso já aconteça com outros investigadores portugueses. E lamenta a instabilidade que o obriga a começar a pensar num novo projecto, se quiser continuar por ali, ainda antes de ter concluído o que está em curso.

Mas gostava de continuar a estudar estas aves, que lhe entraram na vida um pouco por acaso. “Não tenho uma história romântica com maçaricos, as coisas vão acontecendo”, diz.

O seu mestrado foi com garças-vermelhas (Ardea purpurea), em Portugal, e durante o percurso académico passou algum tempo a trabalhar com peixes no Parque Nacional Banco de Arguim, na Mauritânia - o principal ponto de paragem na rota migratória de muitas limícolas. Depois de um ano sem conseguir trabalho, surgiu a oportunidade de trabalhar com limícolas, no Estuário do Tejo. Pediam alguém com experiência no Banco de Arguim. Bateu tudo certo.

Agora, Camilo Carneiro anda a correr pelas planícies do Sul da Islândia em busca de maçaricos-galegos, enquanto os progenitores gritam sobre a sua cabeça. No terreno, também há ninhos de andorinhas-do-mar-árctico (Sterna paradisaea), que são particularmente agressivas, quando têm ninhos ou crias por perto, e levam o biólogo a cobrir a cabeça com um gorro que mantém elevado acima do couro cabeludo, não vá alguma delas lembrar-se de o picar (embora não seja comum).

Há cinco Verões, com muitos dias caóticos pelo meio, que o biólogo percorre estes caminhos e tem pelo menos mais um garantido. Daí para a frente, logo se verá. “É tudo muito bonito, mas se não tivermos salário, não adianta nada”, conclui.

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Este trabalho integra um conjunto de reportagens realizadas com o apoio das EEA Grants.

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