O não-boicote ao Mundial

É precisamente esta reputação suja que torna reprovável a decisão da FIFA de eleger a candidatura qatari. Trata-se de um país muito atrasado em questões humanitárias, onde a homossexualidade é crime e as mulheres ainda sofrem pesadas restrições à sua liberdade.

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EPA/foto-net / Kurt Schorrer / HANDOUT

Estamos a pouco mais de dois meses do pontapé de saída no Mundial FIFA 2022, mas a realidade é que não se sente a antecipação. Efectivamente, desde a vitória da candidatura qatari, em 2010, que se adivinha um campeonato muito diferente do habitual.

Neste que será o primeiro Mundial a jogar-se em países de língua árabe, desde cedo se colocou o grande inconveniente das temperaturas irrespiráveis no Verão destes países. A solução passou por realizar o torneio em meados de Novembro, o que até é louvável, pois favorece, por uma vez, os países do Hemisfério Sul que nessa altura atravessam as estações quentes e a interrupção dos seus campeonatos nacionais. É inédito para muitos assistir a uma competição mundial de selecções que termine perto do Natal e a perda de brilho desta edição deve-se talvez a essa nossa visão eurocêntrica das coisas.

A realização deste torneio no Qatar surge com algumas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, fomentar o desenvolvimento económico e social de um país extremamente rico (6.º PIB per capita mais alto do mundo), mas ainda muito dependente das receitas de petróleo e gás natural. Por outro lado, Qatar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos são três países do Golfo Pérsico que já estão presentes no futebol europeu através de Paris Saint-Germain, Newcastle United e Manchester City, respectivamente. A realização do Mundial de futebol num desses países torna-se a oportunidade perfeita para promover o desporto e ainda para “lavar” a sua reputação internacional, principalmente junto do Ocidente.

É precisamente esta reputação suja que torna reprovável a decisão da FIFA de eleger a candidatura qatari. Trata-se de um país muito atrasado em questões humanitárias, onde a homossexualidade é crime e as mulheres ainda sofrem pesadas restrições à sua liberdade. Um país que traçou um ambicioso plano de construção para este campeonato, mas que - reporta o The Guardian - resultou na morte de mais de 6500 trabalhadores migrantes durante os trabalhos. Uma reportagem recentemente divulgada pela SIC confirma as violações de direitos humanos e condições precárias em que vivem esses trabalhadores.

Graças a um Mundial envolvido em polémica desde o início e já condenado ao fracasso nas frentes humanitária e laboral, vão surgindo manifestações isoladas de boicote ao “maior torneio do mundo”. Vejam-se imagens da Alemanha, onde as claques têm tradicionalmente uma forte vertente social.

Esta atitude é positiva, no sentido em que desperta a atenção da sociedade para as atrocidades cometidas pelo país organizador. É uma questão de princípio e de respeito pelos milhares de trabalhadores que perderam a sua vida. No entanto, organizações de direitos humanos como a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch não planeiam promover um boicote ao Mundial de Futebol. Na prática, o mesmo resultaria apenas na perda de receita para os trabalhadores envolvidos na construção dos complexos, debilitando ainda mais a sua posição.

O foco que actualmente recai sobre o Qatar deve ser usado para, por meio da diplomacia e do apoio a projectos para trabalhadores migrantes e mulheres, melhorar a situação destes cidadãos. A FIFA deve aumentar significativamente a pressão sobre o governo do Qatar em torno dos direitos humanos e laborais. Esta estratégia gerou algumas melhorias, tal como a garantia internacional de direitos humanos que futuras candidaturas para Mundiais FIFA terão agora de incluir.

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