Ciência, cidadania, economia (e pandemia?)

Financiaram-se muitos pequenos projetos científicos relacionados com a pandemia, o que, se nalguns casos se justifica, a maior parte das vezes não chega para criar algo definitivo, transformativo, ou com capacidade de ir para o mercado.

Há várias razões para organizar eventos, eu organizo aquilo a que gostaria de assistir. E uma coisa que me interessa é a mudança quase instantânea de discurso, que faz com que discussões que eram cruciais para o sucesso do futuro num dado momento passem a desinteressantes na semana seguinte. Por isso, mesmo após dois anos de pandemia em que mudámos radicalmente o nosso comportamento, não me devia ter espantado que voltássemos ao “normal” e nos parecêssemos esquecer de tudo assim que o assunto se “resolveu”. Nomeadamente na investigação científica, aprendemos alguma coisa com a pandemia?

Foi por isso que promovi um debate no Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra, no qual evitei propositadamente a área que conheço melhor, a da saúde e investigação biomédica, porque tem sido (e bem) focada em permanência. Neste caso uma especialista em ciências da educação, uma engenheira química, um engenheiro mecânico e uma psicóloga dialogaram com um biólogo; e tenho de agradecer à Cristina Vieira, Goreti Sales, Manuel Gameiro e Marcela Matos por terem partilhado as suas experiências com projetos de investigação naquilo que se poderia designar ciência na (e da) pandemia.

Sublinho que as interpretações e reflexões aqui expressas só me vinculam a mim, desde logo este resumo telegráfico: aprendemos imenso em termos de investigação durante a pandemia, mas aplicámos muito pouco, e talvez fosse de pensar (mais) nisso. Por outro lado, ganharíamos em incluir sempre em quaisquer discussões investigadores de áreas diferentes, porque é mesmo surpreendente o que não sabemos (nem pensámos precisar de saber) fora da nossa caixa. No fundo, levar a sério a máxima de Abel Salazar em relação à medicina de que se apenas percebemos de uma coisa nem dessa coisa percebemos.

Um exemplo paradigmático do que descobrimos, mas não resolvemos: todos os estudos (em vários países) indicam que a pandemia afetou muito mais investigadoras, diminuindo a sua produtividade. No entanto, nada disso parece ter transparecido nos processos de avaliação subsequentes de que tenho conhecimento.

Noutra perspetiva, se as vantagens do uso de tecnologia e ferramentas remotas no ensino foram muito claras, pouco foi feito para, aproveitando o que se aprendeu, modificar programas e estratégias. Sobretudo porque as soluções tecnológicas (que de modo algum foram inclusivas) revelaram limitações graves que não se resolvem só com mais tecnologia. Raramente as soluções e modelos apresentados abordaram a parte emocional e social, tendendo a focar matérias e horas de trabalho, como se uma situação como a que vivemos fosse minimizada apenas por mais tempo de estudo, ou as pessoas (sobretudo crianças e adolescentes) fossem robôs a carregar informação.

Por outro lado, a pandemia também recuperou modelos de socialização, afetividade, empatia e solidariedade que ajudaram a construir uma comunidade mais unida, apesar de tudo. Mas essas redes (até de investigação) que nos ajudaram imenso não parecem ter grande estímulo (a não ser individual) para serem mantidas. Se havia momento para repensar a vida em comunidade, o ensino e a investigação sem voltar a um normal que todos assumem ter problemas, não era agora?

Na ligação investigação-economia também houve vários projetos muito interessantes, sobretudo a nível de dispositivos e testagem (ventiladores, equipamento de proteção, sensores, aplicações, etc.).

Duas questões que valia a pena aprofundar aqui têm que ver com abertura e escala. No primeiro caso parece claro que em Portugal nem todas as áreas estão abertas a inovação vinda da academia (nacional) do mesmo modo, seja por questões estruturais das próprias empresas, seja porque as mais-valias não são claras. Por muito que se fale na identificação de áreas estratégicas esta foi uma noção que nunca vi discutida: o tecido económico disponível nessas áreas está recetivo? Ou é preciso selecionar mais; potenciar o que é viável, e desinvestir no que apenas sorve recursos sem dar retorno?

Algo que liga à segunda questão: nestes anos foram financiados muitos pequenos projetos científicos relacionados com a pandemia, o que, se nalguns casos se justifica, a maior parte das vezes não chega para criar algo definitivo, transformativo, ou com capacidade de ir para o mercado, se relevante (com maturidade em termos de TRL [technology readiness levels], um conceito que importa perceber).

Ou seja: financiaram-se projetos que tinham zero hipóteses de passar a outras fases sem muito mais acompanhamento e investimento, que nunca esteve previsto. De um modo mais global, e já a pensar também nas verbas no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), é preciso, não só listar os investimentos feitos em ciência por (ou com associação a) empresas, mas distinguir quais deles são mesmo em investigação científica (e que resultados tiveram), por oposição a atividades que só com boa vontade é possível classificar como investigação. Ou que apenas avançaram, não por um ímpeto produtivo, mas porque havia financiamento disponível, e se tentou arranjar uma justificação plausível para o aproveitar.

Sem esses estudos de impacto podemos desenhar as estratégias que quisermos, para depois nos admirarmos de apenas resultarem no papel; na verdade, às vezes dá ideia que isso chega. Se as perguntas são genuinamente complexas têm de ser discutidas como tal, não substituídas por outras perguntas mais simples, cuja resposta conforta, mas nada resolve.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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