Aumentar a tarifa da água “faz sentido” desde que não se prejudiquem as famílias numerosas

Governo recomendou o aumento da tarifa para os maiores consumidores de água, mas muitas autarquias recusam. Especialistas concordam que o aumento da tarifa é uma solução em alturas de seca, mas há também que olhar para as perdas de água e repensar o consumo.

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Todo o território continental está em seca Enric Vives-Rubio/ARQUIVO

Aumentar a tarifa da água para grandes consumidores nos concelhos que mais sofrem com a seca “faz sentido”, mais não seja para passar a mensagem de urgência e de que é mesmo preciso poupar água. Mas mudar comportamentos de consumo de água leva tempo e é preciso assegurar que as famílias numerosas não saem prejudicadas por causa deste aumento. A medida para enfrentar a seca foi recomendada pelo Governo na quarta-feira e destina-se aos maiores consumidores domésticos de água.

“Penalizar escalões acima dos 15 metros cúbicos mensais faz sentido e não penaliza quem consome o estritamente necessário”, considera Jaime Melo Baptista, presidente da Lis-Water (Lisbon International Center for Water), um centro internacional sem fins lucrativos sobre políticas e gestão da água. “Mas tem de ser bem gerido, pois é necessário não prejudicar as famílias numerosas, que têm inevitavelmente de gastar mais água”, refere.

Este aumento “mostra um sinal que é importante dar às pessoas de que a água é escassa, sobretudo numa situação de seca”, defende Rodrigo Proença de Oliveira, do Instituto Superior Técnico (IST). Essa mensagem de sensibilização até acaba por ter um impacto maior do que aquilo que se poupa através da subida do preço da água, acredita. De qualquer forma, “essa alteração de comportamentos exige tempo”, diz, duvidando de que “as pessoas reajam imediatamente a esse aumento de tarifa”.

O investigador diz que também é preciso olhar para as perdas de água, quer nos sistemas de distribuição para as sociedades quer na agricultura, que é o maior utilizador de água em Portugal. “Tudo isso faz com que faça sentido aumentar o preço da água, sempre salvaguardando a capacidade de pagamento de cada família”, considera Rodrigo Proença de Oliveira. Para assegurar esse equilíbrio, existem as tarifas sociais e os escalões de água que diferenciam entre os maiores e menores consumidores de água.

Na quarta-feira, o ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro, referiu que cada família portuguesa gasta, em média, dez metros cúbicos de água por mês; os dados que citava são da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR). Um relatório de 2020 dessa entidade mostra que o abastecimento de água é o serviço com mais custos (44,9%), seguindo-se o saneamento de águas residuais (34,6%) e a gestão de resíduos urbanos (20,5%).

A medida, explicou o Ministério do Ambiente ao PÚBLICO nesta sexta-feira, foi recomendada tendo em conta a tarifa variável do serviço de abastecimento público de água dos consumidores domésticos, que define o preço em euros por cada metro cúbico de água gasto em 30 dias. Assim, os consumidores acima do terceiro escalão (em que se insere quem gasta 15 metros cúbicos de água ou mais) são o alvo desta recomendação do Governo. Ficam de fora os consumidores do primeiro e segundo escalão (de zero a cinco metros cúbicos e entre cinco e 15 metros cúbicos, respectivamente).

A recomendação permanecerá em vigor “enquanto o sistema que abastece aquele território se encontrar em situação crítica”, esclarece ao PÚBLICO o gabinete de comunicação do Ministério do Ambiente e da Acção Climática. Em causa estão os 43 municípios em situação mais crítica (ver lista em baixo).

“A água é um bem escasso e imprescindível à vida”, lembra Jaime Melo Baptista, e as preocupações com a sua “utilização racional devem fazer parte do nosso dia-a-dia”. Em períodos de seca, defende, devem ser redobradas.

Autarquias recusam

autarquias que se recusam a seguir esta medida. O município de Lagos afirma que irá, numa primeira fase, analisar o impacto que essa medida poderá ter ao nível da poupança de água, tendo em conta a questão da sazonalidade, das “famílias numerosas que eventualmente possam estar incluídas no escalão de consumo indicado pelo Governo” e os seus rendimentos. Até à conclusão dessa análise, o município de Lagos diz que não irá aumentar, por agora, a tarifa para grandes utilizadores domésticos de água no município.

O presidente da Câmara Municipal de Chaves, Nuno Vaz, também não irá aumentar a tarifa sem antes perceberem quantos metros cúbicos são consumidos por mês no concelho. Se, de facto, o volume dos grandes consumidores​ de água for elevado, “estarão disponíveis para fazer esse ajustamento”, apesar de o valor entre os 15 e os 25 metros cúbicos estar já no valor de dois euros por metro cúbico, e o quarto escalão “já por cerca de três euros​” por metro cúbico. No concelho de Chaves, por ano, consome-se acima de três milhões de metros cúbicos de água, portanto Nuno Vaz diz que se vai avaliar se a proposta anunciada terá algum impacto no desincentivo no consumo excessivo de água.

No município de Mangualde, o presidente da câmara, Marco Almeida, explica que estão a monitorizar “tudo aquilo que tem a ver com gastos” e, para já, tal como os restantes concelhos, não vão aumentar as tarifas. E afirma que os grandes consumidores já são penalizados caso ultrapassem os 15 metros cúbicos. “No que diz respeito ao consumo doméstico, 70% da população está dentro do primeiro escalão”, afirma Marco Almeida.

Para já, Vila Nova de Foz Côa é a única autarquia que diz estar a avançar com a proposta da alteração do tarifário, mas ainda não tem valores concretos do acréscimo. Viseu, Vila Real, Murça, Peso da Régua, Santa Marta de Penaguião, Mesão Frio e Torre de Moncorvo recusam aumentar as tarifas da água.

Mas, por agora, este aumento continua a ser uma mera recomendação do Governo. “É uma recomendação porque o Estado não gere, directamente ou através do seu sector empresarial, a distribuição em baixa [pressão] de nenhum dos sistemas de situação crítica”, esclarece o ministério. “As medidas devem ser aplicadas pelas entidades gestoras em baixa, que podem ser municipais.”

Apesar de esta medida ser apenas recomendada para os concelhos em situação mais crítica, “nada impede que qualquer outro município decida adoptar esta medida”, afirmava o ministro do Ambiente na quarta-feira. Disse mesmo que, numa altura de seca, não seria má ideia aplicar a medida em todo o país.

Perdas de água num país cada vez mais seco

Com ou sem seca, a escassez de água é um problema com que teremos de lidar nos próximos anos. Rodrigo Proença de Oliveira é também autor de um estudo de 2021 sobre a disponibilidade de água em Portugal, que mostra que nos últimos 20 anos essa disponibilidade reduziu-se cerca de 20% no país. “Portugal enfrenta e vive numa zona em que há escassez de água”, ressalva. “A escassez de água é crónica e vai continuar”, diz, mas a seca, “por muito grave que esteja a ser, mais cedo ou mais tarde vai terminar”. E é fulcral “investir numa maior eficiência da água”.

As perdas de água são um assunto que gera preocupação. “Captam-se actualmente em Portugal cerca de 820 milhões de metros cúbicos por ano de água aos recursos hídricos superficiais e subterrâneos para abastecer a população”, explica Jaime Melo Baptista, que também foi presidente da ERSAR. Desse valor, estima-se que “cerca de 194 milhões de metros cúbicos por ano, 24%, sejam perdidos no processo de produção e distribuição em perdas físicas, o que é claramente excessivo”.

Uma das formas de resolver este problema é melhorar a governança das entidades gestoras para que façam uma gestão mais eficiente, mas também reabilitar as redes para que não se degradem, observa Jaime Melo Baptista. E é preciso que também exista uma “adequada política tarifária” e que sejam tomadas decisões informadas. “Temos de investir muito ainda no conhecimento sobre como usamos a água e onde é que existe água que pode ser utilizada”, resume Rodrigo Proença de Oliveira.

O território continental português está todo em seca severa ou seca extrema e assim deverá continuar nas próximas semanas. “Não mudou muito durante o Verão, já sabíamos que ia chover pouco ou praticamente nada”, diz o professor do IST. “A questão crítica vai ser a partir de Outubro: ou começa a chover, ou esta se prolonga e é complicado.”