Desporto: acima de tudo os direitos humanos
Muitas são as vezes em que quando se discutem direitos e interesses legítimos a propósito de desportistas, as análises se quedam pelo registo normativo específico que resulta, por exemplo, de uma lei sobre o contrato de trabalho do praticante desportivo ou qualquer outro regime legal específico alcançado no quadro estritamente desportivo. Tais análises deixam para segundo plano, quando não votam ao esquecimento, que antes do desportista, existe um ser humano que carrega com ele uma protecção muito especial dos seus direitos, em nome da dignidade da pessoa humana. Uma das consequências de este alargar da visão reflecte-se na vertente jurisdicional, da resolução dos litígios desportivos. Ainda bem, dizemos nós.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ofereceu-nos recentemente mais um bom exemplo. O caso prendia-se com o apoio (ou não) aos xadrezistas sérvios com deficiências visuais e de forma desigual à dos restantes xadrezistas.
Em 2006, a Sérvia criou um Estatuto de Reconhecimento e Recompensas de Méritos Desportivos que visava recompensar e reconhecer atletas nacionais pelos seus méritos desportivos. No ano seguinte, em 2007, a Federação Sérvia de Xadrez propôs que esse reconhecimento fosse atribuído a diversos atletas federados que haviam conquistado medalhas em competições internacionais, incluindo os xadrezistas com deficiências visuais.
Porém, ao contrário dos xadrezistas sem deficiências visuais que haviam alcançado proezas semelhantes, esses praticantes não foram incluídos na proposta formal apresentada pelo Ministério da Educação e Desporto ao Governo sérvio.
Os atletas com deficiências visuais reagiram apresentando uma acção cível de discriminação contra a República da Sérvia. Em Abril de 2010, houve uma primeira decisão judicial que lhes foi favorável. Todavia, iniciou-se aí um calvário nos tribunais, com acções e recursos que culminou, a nível interno, com a decisão do Tribunal Constitucional, em 2015, o qual adiantou que os atletas em causa não haviam sofrido qualquer tipo de discriminação pois as suas medalhas não haviam sido conquistadas em competições listadas naquele Estatuto.
Os requerentes, considerando-se lesados e discriminados pelas entidades nacionais, recorreram às entidades europeias fundamentando a sua posição no artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (proibição de discriminação), no artigo 8.º (direito ao respeito pela vida privada e familiar), no artigo 1.º do Protocolo Adicional à CEDH (protecção da propriedade), bem como no artigo. 1º do Protocolo Adicional nº 12 à CEDH (proibição geral de discriminação).
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, analisou o caso tendo por raiz artigo. 1º do Protocolo Adicional nº 12 à CEDH (proibição geral de discriminação).
Embora entendendo legítimo que as entidades nacionais sérvias quisessem focar-se mais nos méritos desportivos associados a competições com mais relevo no tecido nacional, considerou que não foi demonstrado por que razão os altos méritos conquistados por atletas com deficiências visuais eram menos significativos do que méritos semelhantes conquistados por atletas de xadrez sem esse tipo de deficiência. O TEDH referiu que o “prestígio” de um desporto não deve residir no facto de ser praticado por pessoas com ou sem deficiência.
Assim, o TEDH concluiu que não havia sido apresentada uma razão objectiva e razoável para tratar os xadrezistas com deficiência visual de forma distinta com base nessa condição, havendo, portanto, uma violação do artigo 1.º do Protocolo Adicional n.º 12 à CEDH, tendo ficado decidido que as entidades sérvias deveriam pagar a cada requerente o valor de 4.500€ por danos morais, ordenando também que fossem pagos os benefícios financeiros acumulados e não atribuídos até aquele momento assim como os valores futuros a que teriam direito caso as medalhas tivessem sido conquistadas nas Olimpíadas de Xadrez para jogadores sem deficiências visuais.
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