Fogos de 2019 e 2020 na Austrália causaram o maior aquecimento na estratosfera em 30 anos
Estudo de investigadores britânicos mostra que algumas nuvens de fumo atingiram altitudes na ordem dos 36 quilómetros. Não é nada comum uma nuvem de fumo escalar tanto, diz-nos um dos autores.
Os incêndios que em 2019 e 2020 semearam o pânico na Austrália foram gigantescos. Diferentes fontes apresentam diferentes estimativas, mas, segundo a organização ambientalista World Wide Fund for Nature (WWF), as chamas, que tiveram especial severidade entre Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020, terão consumido até 19 milhões de hectares (mais ou menos o sêxtuplo da floresta portuguesa), destruído mais de 3000 habitações e vitimado ou provocado a deslocação de cerca de três mil milhões de animais. Foi um Verão catastrófico num país que, por mais que veja com regularidade a cor laranja do fogo, viveu então uma situação excepcionalmente grave.
Agora, num estudo publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature, investigadores de duas universidades inglesas (a de Exeter e a de Manchester) demonstraram que o fumo dos fogos teve um impacto tão grande que causou o maior aquecimento na estratosfera — camada atmosférica por cima da troposfera (onde nós vivemos) e pode ir até aos 60 quilómetros de altitude — em cerca de 30 anos.
O que aconteceu há cerca de 30 anos? No dia 15 de Junho de 1991, entrou em erupção o vulcão do monte Pinatubo, vulcão situado nas Filipinas. A explosão, que foi uma das maiores erupções vulcânicas terrestres do século XX, libertou um exército de fumo, que subiu e subiu até atingir a estratosfera, onde, consequentemente, viria a ser registado um aumento da temperatura.
Segundo um gráfico do estudo publicado esta quinta-feira (e que tem como autora principal Lilly Damany-Pearce, da Universidade de Exeter), a erupção do Pinatubo levou a que, nos meses seguintes, a temperatura estratosférica estivesse cerca de 1,5 graus Celsius acima da média (calculada desde 1979). Com o desvanecimento gradual dos efeitos da erupção, a situação estabilizar-se-ia, mas voltou a haver um pico entre o final de 2019 e o primeiro semestre de 2020, por ocasião dos incêndios na Austrália.
Lilly Damany-Pearce e os investigadores com quem trabalhou analisaram imagens recolhidas por satélites para monitorizar os níveis de fumo na estratosfera, no hemisfério Sul, entre Dezembro de 2019 e o ano de 2020. Verificou-se que, no último dia de 2019, uma nuvem de fumo formada na sequência dos fogos na Austrália passou da troposfera para a zona inferior da estratosfera, ascendendo a altitudes na ordem dos 16 quilómetros. A 12 de Janeiro de 2020, outra nuvem cinzenta realizou uma escalada idêntica.
Ao longo de 2020, registar-se-iam várias perturbações similares, referem os cientistas, que sublinham que a maior nuvem de fumo terá atingido os 36 quilómetros de altitude. É um valor assustadoramente elevado.
Para perceber que impacto estas grandes nuvens de fumo tiveram na temperatura estratosférica, os cientistas socorreram-se de um modelo climático avançado, para fazerem várias simulações. O modelo, quando considerou a presença do fumo na estratosfera e os seus efeitos na subida da temperatura entre Novembro de 2019 e Novembro de 2020, apresentou temperaturas estratosféricas 0,65 graus Celsius acima da média num período compreendido entre Janeiro e Junho de 2020. O valor aproximou-se muito da subida de 0,7 graus que, de acordo com vários estudos científicos, foi observada na realidade.
Com esta observação, os cientistas concluíram que o fumo dos incêndios foi o grande responsável pelo aumento temporário da temperatura estratosférica, que foi o mais significativo desde a erupção do Pinatubo. O pico das chamadas “anomalias quentes” terá ocorrido entre Janeiro e Março de 2020, em altitudes entre os 12 e os 16 quilómetros acima da superfície terrestre.
Como é que isto aconteceu?
Jim Haywood, um dos oito autores do estudo, explica ao PÚBLICO que não é nada comum uma nuvem de fumo escalar tanto que atinge uma altitude na ordem dos 36 quilómetros. Como é que isto aconteceu?
O investigador, da Universidade de Exeter e integra ainda o Centro Hadley do Met Office, um centro de investigação britânico sobre alterações climáticas, explica que a composição do fumo, embora dependa da natureza do combustível queimado e das condições de combustão, pode incluir tanto carbono orgânico como carbono negro. Este último é um poluente atmosférico, cuja formação resulta da combustão incompleta de combustíveis fósseis, madeira ou biomassa. Quando, no contexto de um incêndio, a vegetação não arde totalmente, ocorre a formação de carbono negro, que tem esse nome por conferir uma cor escura ao fumo.
Na sequência dos fogos na Austrália, formou-se muito carbono negro, diz Jim Haywood. Por terem uma cor escura, algumas nuvens de fumo absorveram muita luz solar, o que se traduziu num aumento da sua temperatura. Por sua vez, este aumento levou a que as nuvens subissem de forma extremamente acentuada, “como se fossem um balão de ar quente”. “O fumo subiu imenso porque absorveu imensa luz solar. E absorveu imensa luz solar por causa do carbono negro”, resume.
O investigador diz que o estudo não só demonstra que o aumento da temperatura estratosférica foi provocado pelos incêndios na Austrália, como também prova que as nuvens de fumo e as partículas nelas presentes prejudicaram a camada de ozono (cujo buraco de 2021 foi um dos maiores e mais duradouros desde que há registos). “Isto tem implicações muito alarmantes. O Protocolo de Montreal [acordo global que visa proteger a camada de ozono, através da eliminação progressiva dos químicos que a fragilizam] tem produzido resultados favoráveis, mas todo o progresso pode vir a ser desfeito pelo aquecimento global, se no futuro tivermos mais incêndios que mandam todo este fumo para a estratosfera”, afirma.
Os autores do estudo lembram que, com as alterações climáticas, é bem possível que no futuro venhamos a testemunhar fogos não só mais intensos, como mais frequentes. Com isto, poderá aumentar a probabilidade de mais casos de aquecimento estratosférico e danificação da camada de ozono, que é importante para filtrar e impedir a passagem dos raios ultravioleta até à superfície terrestre.