Foi por serem selvagens que os coelhos ingleses conquistaram a Austrália
Equipa com cientistas portugueses usa a genética para determinar a origem dos coelhos que se tornaram uma espécie invasora na Austrália. Quase todos descendem de uma única importação de Inglaterra, e de apenas cinco fêmeas.
Calcula-se que haja 200 milhões de coelhos hoje na Austrália, e são considerados uma praga, uma espécie exótica que causa inúmeros problemas aos ecossistemas e à agricultura. Esta imensidão de coelhos que hoje povoa a Austrália tem origem numa única importação de Inglaterra de 13 destes animais, feita por um colono inglês que queria caçar nas suas novas terras em 1859. Porque é que tiveram tanto sucesso? Porque eram coelhos selvagens, com mais capacidade para se adaptarem ao seu novo lar, demonstra um artigo publicado nesta segunda-feira que tem entre os principais autores cientistas portugueses.
“A história do coelho na Austrália é uma das invasões biológicas mais devastadoras”, disse ao PÚBLICO Joel Alves, o primeiro autor do trabalho publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences. É quase uma lenda atribuir a invasão biológica e a introdução dos coelhos na Austrália à importação feita pelo colono inglês Thomas Austin, apesar de antes desta se terem feito múltiplas importações. Mas seria comprovável cientificamente?
“O facto de ter acontecido num período relativamente recente significa que há um registo histórico muito, muito grande. No entanto, são informações que passam de pessoas para pessoas, registo de jornais, e é muito difícil perceber quais os aspectos que são verdadeiros, e os que são falsos ou exagerados”, disse Joel Alves, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Oxford, no Reino Unido, juntamente com Miguel Carneiro e Nuno Ferrand, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, e outros cientistas do Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, que usaram a genética para verificar esta versão da história.
Através da genética, e análise de fontes históricas, a equipa demonstrou que a invasão biológica dos coelhos na Austrália partiu mesmo da importação de Thomas Austin.
Os cientistas analisaram amostras de ADN de coelhos de vários pontos do mundo e determinaram que a esmagadora maioria dos que existem na Austrália são mais parecidos com os coelhos selvagens do Reino Unido. “Mas mais do que isso: conseguimos perceber que são mais parecidos com os de uma região, precisamente aquela de onde a família do Thomas Austin era originária, Baltonsborough, uma pequena vila no Sudeste de Inglaterra”, explicou Joel Alves.
“No fundo, conseguimos quase traçar toda a história dos coelhos, desde o Sudeste de Inglaterra, até Victoria, na Austrália, e depois a expansão subsequente”, afirma o investigador. “Demonstrámos que houve de facto uma invasão biológica que se expandiu por todo o continente australiano e que a fonte partiu da importação de coelhos por um único indivíduo, em 1859”.
A maior parecença dos coelhos australianos com os coelhos selvagens do Reino Unido foi demonstrada por métodos de análise genética, que corroboraram registos escritos de um parente de Thomas Austin, que descreve como a sua família obteve os coelhos que o colono australiano pediu: “Seis eram espécimes ainda não adultos tirados dos seus ninhos e domesticados”, relata o parente, John Palmer. E para compor a encomenda, foram comprados sete coelhos cinzentos a agricultores que os mantinham em gaiolas, como animais de estimação, ou para serem comidos. Como eram cinzentos, há uma boa probabilidade de serem coelhos selvagens que tivessem sido apanhados.
Cinco mães ancestrais
Usando um método de análise genética da linha materna, os cientistas perceberam que todos os coelhos modernos da Austrália descendem de apenas cinco fêmeas. É inesperado que as mães ancestrais dos coelhos australianos sejam tão poucas? “O que os dados mostram é que a população parece ter origem num pequeno número de fêmeas”, diz Joel Alves.
Mas não é uma história assim tão invulgar. “Há populações de coelhos que resultam de introduções com várias centenas de indivíduos, outras com apenas um indivíduo. Não é tão surpreendente que tenha sido um número tão pequeno de fêmeas”, considera.
Veja-se o relato histórico que nos diz que o primeiro habitante da ilha de Porto Santo foi uma fêmea grávida de coelho, deixada em terra pelo capitão Bartolomeu Perestrelo, que mais tarde foi designado como primeiro Capitão Donatário desta ilha. Os descendentes desta coelha acabaram por se tornar uma praga em Porto Santo – embora agora a população de coelhos da ilha esteja ameaçada pela doença hemorrágica viral, causada por um vírus libertado em 1996 na Austrália para tentar controlar a população de coelhos e que se espalhou.
“Porto Santo se calhar vai ser um dos nossos próximos projectos, vamos tentar explorar se isto que consta dos registos históricos é mesmo verdade, se uma única fêmea grávida conseguiu criar uma população altamente sustentável”, relata Joel Alves.
Selvagens e adaptados
“O que tornou esta invasão tão bem-sucedida foi precisamente o facto de serem coelhos selvagens. Não eram coelhos domésticos, que eram mansos e estavam pouco adaptados ao ambiente natural”, explica Joel Alves.
Houve outras introduções de coelhos na Austrália, antes da de Thomas Austin. Em 1870, havia coelhos um pouco por todo a costa australiana, descritos como coelhos domésticos, dizem os cientistas. “A origem doméstica destas populações é fundamentada na descrição de características que normalmente estão ausentes nos coelhos selvagens, como a mansidão, pelagem colorida e orelhas flexíveis”, escrevem no artigo. Mas não se expandiam para além da área em que estavam, nem eram considerados uma praga.
Isso mudou a partir do fim do século XIX. Houve uma explosão na população de coelhos na Austrália: espalharam-se à velocidade de 100 quilómetros por ano. “Levaram 50 anos a cobrir uma área 13 vezes maior do que o seu habitat natural na Península Ibérica. Esta foi a mais rápida taxa de colonização de um mamífero introduzido jamais registada”, escreve a equipa de Joel Alves. “No início do século XX, os coelhos era uma característica notável da paisagem australiana, no que foi descrito como um ‘cobertor cinzento’ que cobria a terra”, explicam os cientistas.
Mas que vantagens tinham os coelhos de Thomas Austin por serem selvagens e não domesticados? “Os coelhos têm uma grande capacidade de readaptação. Por isso é que temos coelhos em ilhas com ambientes subantárcticos, e nos desertos da Austrália, em que as temperaturas são insuportáveis e não há praticamente comida. Os coelhos são particularmente adaptáveis”, expõe Joel Alves.
A Austrália pode parecer muito diferente da Península Ibérica, de onde são originários os coelhos, mas tem vários tem ambientes semelhantes, “com períodos bastante secos no Verão, bastante quentes”, sublinha o cientista. “Os coelhos têm uma grande vantagem em relação a muitos animais porque fazem tocas. Ora quando se faz tocas tem-se uma capacidade muito maior de resistir ao calor e a temperaturas extremas”, explica.
Os coelhos domésticos são seleccionados por nós para terem características como a mansidão. Não é toa que conseguimos pegar ao colo em algumas raças de coelho doméstico e fazer-lhes festas – o mesmo não acontece com os coelhos selvagens. “Nos coelhos domésticos, seleccionamos animais que não tenham uma reacção de medo muito grande, que não tenham elevados níveis de stress por estarem num ambiente enclausurado. Todas essas características, que são boas em animais domésticos, são péssimas num ambiente selvagem”, resume Joel Alves.
Supressão de predadores
Os coelhos começaram por se adaptar a uma Austrália onde ainda havia predadores. “Os dingos [cães selvagens] eram predadores naturais, os gatos e as raposas foram introduzidos mais tarde. Um coelho doméstico não tem a mesma capacidade de reacção, ou seja, tem características que nós seleccionámos, durante o processo de transformação de um animal selvagem num animal doméstico”, expõe.
Está nos planos da equipa tentar comparar o ADN dos coelhos australianos com o dos coelhos de Inglaterra, de onde vieram os seus antepassados, para tentar perceber o que é mudou no seu genoma para que se adaptassem. “Tentar perceber, por exemplo, se existem genes associados ao metabolismo que foram seleccionados durante este processo”, diz Joel Alves.
“O que vamos fazer daqui para a frente é procurar a base genética desta adaptação. Tentar perceber exactamente quais os genes e regiões do genoma que permitiram a melhor adaptação destes coelhos”, resume.
Mas o que aconteceu na Austrália com os coelhos foi na verdade uma conjugação de factores, aquilo a que Joel Alves chama “uma tempestade perfeita”. Por um lado, havia coelhos mais adaptados ao ambiente selvagem. Só que a explosão da população coincide com a intensificação da pecuária da Austrália, que criou condições excepcionais para os coelhos poderem progredir. “Há a supressão de predadores quando a Austrália começa a ser colonizada pelos europeus, começam a ser mortos porque obviamente atacam o gado. E começa a haver grandes áreas de pasto, que são bastante vantajosas para os coelhos”, explica.
A partir daí, diz, “é uma espécie de um jogo de números”. Quando a população começa a crescer e começa a expandir-se, e a ter uma certa viabilidade, é muito difícil parar. “Vi uma vez uma analogia que achei muito interessante, para explicar a expansão dos coelhos na Austrália: os predadores não conseguiram travá-la porque [o processo] funciona como um travão de mão, que não é eficaz se o carro estiver numa descida. Ou seja, consegue travar o carro numa superfície plana. Mas se o carro começa a ganhar balanço, não faz diferença nenhuma”, ilustra Joel Alves.
Passa-se por um ponto de não retorno: os coelhos têm uma grande capacidade de reprodução, que é muito maior do que a dos predadores, e começam a crescer em grandes números. “Não há nenhuma população de predadores que os consiga conter”, diz o investigador.
Ameaçados em Portugal
A maior ironia, diz Joel Alves, é que os coelhos são uma espécie ameaçada em Portugal e na Península Ibérica, e são importantes para a sobrevivência do lince-ibérico. Tem conversas com cientistas australianos em que parece estar a falar de outro mundo, quando apresenta o seu trabalho sobre a mixomatose, publicado em 2019 na revista Science – em que a sua equipa determinou que o coelho-bravo, ou coelho-europeu (Oryctolagus cuniculus), está a tornar-se imune a uma das doenças que mais afecta a espécie, através da selecção natural.
Este foi o primeiro vírus introduzido na Austrália para tentar controlar a população de coelhos, na década de 1950 – se inicialmente dizimou os animais, os que sobreviveram ganharam imunidade e transmitiram-na às gerações futuras. Mas o vírus espalhou-se.
“Os australianos nem querem acreditar. Dizem ‘estamos aqui a gastar milhões e milhões e milhões de dólares a tentar todas as alternativas para controlar a população de coelhos e vocês estão-me a dizer que no local de onde os coelhos são originários eles estão ameaçados?”, relata Joel Alves. “Isto é muito interessante, mostra a complexidade das espécies. O coelho só por si não se torna uma praga. É preciso que esteja num ambiente propício”, conclui.