Aos pés do Árctico e com as alterações climáticas como escritório
Pedro Rodrigues dirige uma estação de investigação a três quilómetros do Círculo Polar Árctico. Entre a protecção da tundra, a monitorização da fauna local e o estudo de poeiras da alta atmosfera, há pouca monotonia na vida do biólogo açoriano. Mesmo que possa passar dias inteiros sem falar com outras pessoas.
Pedro Rodrigues chega de casaco quente e impermeável, gorro, uma gola que lhe tapa o rosto quase todo, luvas para distribuir, se for preciso, água e umas abençoadas barritas de cereais que hão-de ajudar a enganar a fome ao longo do dia. A manhã começa com chuva, quatro graus de temperatura e um vento gelado que varre tudo o que encontra pela frente, incluindo nós. A chuva há-de partir a meio do dia, mas não o vento, inusitadamente gelado para um dia de Verão, até mesmo aqui, bem no Norte da Islândia, a apenas três quilómetros do Círculo Polar Árctico. E se para nós a única consequência deste frio e chuva é encolhermo-nos um pouco mais nos casacos e ansiarmos pelo refúgio de um carro ou um edifício quente, para as aves que ali nidificam está a ser bem pior – várias crias não estão sequer a conseguir eclodir.
Encontramo-nos em Raufarhöfn, a aldeia mais a Norte da Islândia continental (o país tem ainda a ilha de Grimsey, já dentro do Círculo Polar Árctico), que é desde Maio do ano passado a casa do biólogo Pedro Rodrigues. Foi nessa altura que ele iniciou funções como director do RIF - Field Station, uma estação de campo que tem como objectivo o estudo e a monitorização da paisagem subárctica única da península de Melrakkaslétta, ao mesmo tempo que procura promover a educação ambiental e contribuir para o desenvolvimento da comunidade local. É tudo isto que o investigador português tem em mãos e é para a sua área de estudo que nos deslocamos apesar do tempo agreste: o terreno que abarca cerca de 70 quilómetros quadrados da península, onde a tundra, a costa rasgada por baías e lagoas de água doce e a presença de diversas espécies de aves e mamíferos são o escritório do açoriano.
Pedro Rodrigues fala e ri-se muito. Está sempre a dizer piadas, quase como se este dia em que está acompanhado, em vez de percorrer, solitário, a sua área de trabalho, funcionasse como uma espécie de catarse. “No último ano não falo muito com pessoas”, admite, entre gargalhadas.
É fácil de perceber. Apesar de ser Verão, não se encontra ninguém nas ruas da aldeia com menos de 200 habitantes, excepto junto ao Arctic Henge, um monumento em pedra, ainda em construção, que é uma espécie de gigantesco relógio de sol, similar a Stonehenge, e que já atrai visitantes a esta remota localidade islandesa. Fora dali, em direcção à tundra e ao terreno sob a gestão do RIF, a solidão é quase completa. Como é que um português acaba a trabalhar e a viver ali? Quase por acaso.
Depois de ele e a esposa, a investigadora Joana Micael, terem terminado os respectivos cursos na Universidade dos Açores, e de não terem encontrado um trabalho que os satisfizesse em Portugal, rumaram ao Chile, onde trabalharam durante cerca de quatro anos. Quando decidiram regressar à Europa, visitaram a Islândia e gostaram do que viram. Como ambos arranjaram emprego nas suas áreas, acabaram por ficar.
“Quando surgiu a possibilidade de vir trabalhar nas alterações climáticas no Norte da Islândia, no Subárctico, achei que era uma oportunidade de desenvolver um bocadinho mais os meus conhecimentos, de aprender mais sobre uma área em que sempre tive muito interesse, de forma a aplicar os meus conhecimentos o melhor possível, não só com aves mas toda a biodiversidade. E como me apercebi de que há a hipótese de apoiar outros investigadores e estudantes, de modo a que todos possamos fazer algo pelo futuro do planeta, foi isso que me guiou”, explica.
A esta paisagem árctica chega-se de carro
Pedro Rodrigues é da ilha de São Miguel, tem uma estrelinha-dos-açores (Regulus regulus) tatuada no antebraço e fez o doutoramento em filogeografia de passariformes nos Açores. Mas uma das coisas que o cativa no trabalho que agora desenvolve é a diversidade que ele acarreta. O RIF está envolvido em cerca de 20 projectos, próprios e em parceria com diversas instituições, que vão muito além do estudo e monitorização das aves. E apoiar os investigadores que querem estudar o Árctico ou o Subárctico é mesmo um dos temas que mais entusiasma o português, que não se cansa de repetir que está pronto para dar todo o apoio necessário a quem dele precisar.
“Nós damos todo o apoio que podemos, desde estadia a ajuda de campo. E podemos fazer trabalhos remotos. Se há investigadores que têm interesse em obter amostras ou ter cá algum aparelho durante determinado período de tempo, podemos dar esse apoio”, diz. Afinal, acrescenta, sempre sorridente: “Se queres estudar a paisagem do Árctico vais de avião, são dias e dias de viagem. Aqui é o único sítio onde podes chegar de carro.”
Porque, brinca, se os homens estabelecerem a régua e esquadro que o Círculo Polar Árctico terminava três quilómetros a Norte destas paragens, a verdade é que o que ali existe, em termos de paisagem, não apresenta grandes diferenças. E as alterações climáticas, que se têm feito sentir mais precisamente naquela região do planeta, também são notórias neste pedaço de terra, onde, como aconteceu a Pedro Rodrigues em Outubro do ano passado, um gigantesco icebergue pode chegar num dia qualquer, enchendo o horizonte. E, como já aconteceu no passado, trazer um urso polar com ele.
Neste dia não há icebergues nem ursos polares à vista, mas Pedro Rodrigues encaminha-nos para uma praia onde estão as carcaças de duas baleias-piloto que, no Natal do ano passado, foram atiradas para terra por uma violentíssima tempestade, e ali morreram. Uma delas ainda tem dentes, e uma mulher procura arrancá-los com uma faca, mas acaba por desistir quando chegámos. “Para além do típico aumento da temperatura média anual, o que se nota mais aqui no Norte da Islândia são fenómenos extremos, nomeadamente de tempestades cada vez mais regulares e fortes que têm aparecido”, diz.
As “grandes ondas” que chegaram no Natal são uma marca dessas tempestades e têm consequência bem visíveis na costa da península – o avanço do mar acaba por inundar as lagoas de água doce que pontuam a área e muitas foram já totalmente absorvidas pelo oceano, mudando a configuração da costa e a biodiversidade que ali existia. E se juntarmos isto às temperaturas mais altas que já se fazem sentir (parece impossível de acreditar neste dia gelado de Verão, mas tem sido assim), há toda uma mudança preocupante em curso. “Devido à falta de gelo, muitos lagos desaparecem no Verão e isso implica com a biodiversidade da zona. Ao perdermos os lagos, estamos a perder os invertebrados desses lagos e peixes, obviamente. Todo esse ecossistema está a ser alterado de forma muito rápida e quanto mais alta a latitude, mais drásticas são essas alterações”, diz.
Flores salvadoras
O próprio nome da estação, RIF, é um sinal disso. RIF era o nome de uma quinta que existiu durante mais de um século na costa da península, mas que acabou por ficar desabitada, há algumas décadas, depois de ser fustigada e destruída pelo agigantamento do mar. Nos anos que se seguiram, conta Pedro, “a natureza voltou a ganhar espaço e o local é quase prístino, em termos de vegetação do Árctico”. Em 2014, o governo criou a estação de investigação, baptizada com o nome da quinta, entregando-lhe a gestão de toda a área envolvente.
Parte dessa área inclui a tundra, um local em que a vegetação se desenrola como se repousasse sobre grandes bolas, inchada pela água que tem a capacidade de reter – “como os sapais em Portugal”, exemplifica Pedro Rodrigues – e coberta por plantas típicas do Árctico. Proteger esta paisagem é uma das funções do RIF. E, como tantas vezes acontece, não são só as alterações climáticas a pô-la em risco. O investigador aponta para uns sulcos profundos, e quase desprovidos de vida, deixados pela passagem de um carro por cima da vegetação. “Para isto voltar ao normal são precisas centenas de anos e, entretanto, começa a erosão. Vai ficando assim e estamos a falar de um ecossistema único”, lamenta.
Uma das principais armas da tundra contra a perda de solo é uma pequenina flor, de pétalas brancas, que Pedro Rodrigues nos mostra a seguir. A Dryas octopetala (dríade-branca ou dríade-de-oito-pétalas) é o coração de um dos projectos que o RIF tem em curso com outras instituições, e que procura monitorizar o seu desenvolvimento e estado de saúde. “É uma planta que cria colónias que podem ter mais de 500 anos de existência, e ela faz um grande trabalho na Islândia, ao manter o solo, pois as suas raízes têm como que uns ganchos que prendem o solo. É, portanto, muito importante para combater as alterações climáticas, nomeadamente as relacionadas com a perda de solo, que vemos em alguns locais na Islândia”, diz.
A erosão e perda de solo do país também provoca, por vezes, estranhas tempestades que se assemelham às tempestades de areia no deserto, e outro dos trabalhos internacionais a contar com a colaboração do RIF tem que ver com a colecta e análise de poeiras da alta atmosfera que, explica o investigador, “é um dos principais aerossóis que temos e não se entende ainda muito bem quais as suas consequências para as alterações climáticas”.
E, depois, há toda a área ligada à monitorização das várias espécies de aves que por ali passam, a caminho da nidificação na Gronelândia, ou que fazem os seus ninhos e têm as suas crias mesmo por ali. Estas últimas estão a ter um ano particularmente difícil, por causa do Verão frio e chuvoso que está a marcar este ano. “As crias que deviam ter nascido neste último mês não conseguiram eclodir e sobreviver, por causa do tempo. O Verão está a ser muito frio e não há sol”, diz o investigador.
Pelo dia-a-dia de Pedro Rodrigues passa ainda o acompanhamento do falcão-branco da Islândia (Hierofalco islandus, “um predador de topo, que come raposas ao pequeno-almoço”, ri), a contagem de espécies migradoras ou o levantamento do número de focas que ocupam a península. Monotonia é, por isso, algo de que o biólogo não se pode queixar. E, a juntar a isto, está todo o esforço em dar a conhecer o RIF e contribuir para o desenvolvimento da comunidade.
No ano passado, pela primeira vez, um grupo de estudantes da Escola de Artes Visuais de Reiquiavique instalou-se durante uma semana em Raufarhöfn e foi guiado por Pedro Rodrigues pela península, para ver os efeitos das alterações climáticas no local. Depois, os estudantes regressaram à capital, para transformarem o que apreenderam em projectos de arte. “Acredito que consigam de forma mais fácil do que nós, cientistas, transmitir o que são as alterações climáticas ao grande público”, diz o biólogo. O projecto vai ser repetido este ano.
E, se quiserem levar para ali projectos de birdwatching ou turismo ligado à natureza, também podem contar com o RIF, insiste Pedro Rodrigues. Para já, ele prepara-se para juntar mais uma tarefa aos seus dias já recheados de diversidade: a partir de Setembro vai começar a ensinar Biologia aos seis alunos da escola da aldeia. “Em troca, eles vão ensinar-me islandês”, ri-se.
Este trabalho integra um conjunto de reportagens realizadas com o apoio das EEA Grants.