Repensar a floresta na serra da Estrela, antes que arda outra vez
Foram 12 dias de sobressalto com a proximidade do fogo junto das casas e vidas dos meus familiares e amigos na serra da Estrela. Nestes dias de ansiedade e incerteza ajudei no que pude para enfrentar os efeitos desta tragédia humana e ambiental. Agora, embora o perigo ainda não tenha passado, tenho finalmente algum tempo para me sentar, numa manhã fresca, antes da próxima onda de calor que já está prevista para o fim de semana, e refletir sobre as razões que levaram a esta tragédia no coração do Parque Natural da Serra da Estrela.
Sou natural da Guarda e tenho a minha casa no limite norte do Parque Natural da Serra da Estrela. A área onde lavrou este último incêndio é-me bem conhecida, e ao longo de várias décadas tenho observado como a paisagem e o clima se têm alterado, mudando de formas que são difíceis de conciliar. A paisagem, que acumula cada vez mais biomassa, é problemática nestes piro-verões, anos secos e quentes com condições climatéricas extremas, perfeitas para incêndios.
A área ardida cruza a serra de uma ponta à outra, das encostas da Covilhã a Este, a Linhares da Beira a Oeste, até à Guarda a Norte, passando por Manteigas. Trata-se de uma área colossal (mais de 26.000 hectares numa estimativa conservadora), e continua a crescer. Mesmo para alguém que viu a serra arder inúmeras vezes, a intensidade deste incêndio foi surpreendente. Destes piro-verões só podemos esperar que se tornem mais frequentes e intensos. Por isso mesmo, é urgente repensar as políticas florestais para antecipar o futuro.
O que está a acontecer este ano é o resultado inevitável de décadas de políticas favoráveis a uma gestão florestal cega à realidade e a considerações de sustentabilidade do território a longo prazo. Grande parte do que ardeu, e que ardeu com brutal intensidade, são as plantações de resinosas de pinho dos anos 30/40 e plantações mais modernas de pinheiro-negro e Pseudotsuga promovidas pelos fundos de desenvolvimento rural dos anos 90. Todas estas plantações ordenadas e geridas conforme as condições de mercado permitem e todas elas reduzidas a cinzas pelas mesmas forças.
Ora, ambas as opções florestais acarretam um significativo risco de incêndio associado, exacerbado pelo contexto das alterações climáticas e do aquecimento global que já se manifestam de forma óbvia na seca histórica de 2022 e nas recorrentes ondas de calor que temos vivido.
Estes efeitos são ainda mais manifestos em zonas de montanha, e o resultado está bem à vista de todos. A intensidade e velocidade de propagação destes incêndios tornam-nos quase impossíveis de controlar, a não ser graças a um golpe de sorte quando as condições climatéricas oferecem alguma janela de oportunidade ao combate.
O combate aos incêndios deve ser uma cooperação entre medidas ativas e passivas. Medidas ativas incluem um dispositivo de combate bem coordenado e com meios suficientes para atuar, com acesso a pontos de água, existência de corta-fogos e acessos em boas condições. Na hora da verdade, estes elementos são determinantes para conter as chamas.
Já as medidas passivas podem e devem ser implementadas de uma forma económica e ecologicamente eficiente. Infelizmente é aqui que temos falhado, ficando aquém das possibilidades que a serra e outras paisagens do país podem oferecer.
Continuamos a apresentar como soluções coisas que, ou dificilmente conseguimos implementar (como o programa de cabras sapadoras que de velha promessa nunca passou do papel), ou que insistimos que funcionam quando a realidade o desmente – como o programa nacional de fogo controlado, que é impraticável à escala necessária num país com condições climáticas que apenas o permitem pôr em prática poucos dias por ano. Temos de olhar de forma despojada de preconceitos para esta realidade e considerar outras soluções, mais económicas, mais eficientes e de base natural.
A serra não é homogénea em termos florestais, e o fogo foi progredindo pelas zonas plantadas com as espécies pirófilas (pinheiros e pseudotsugas). Ao chegar a zonas de floresta autóctone e não plantada, como por exemplo a ribeira de Leandres, um castiçal de castanheiros desordenado, a intensidade do fogo reduziu-se e o incêndio acabou por contornar essa zona, naturalmente resistente. A serra da Estrela sofre há anos de uma redução inexorável e progressiva destas florestas nativas porque, embora sejam mais resilientes ao fogo, não o são à frequência com que o fogo regressa, uma e outra vez.
Estes fogos de recorrência pouco natural, e muitas vezes desencadeados por mão humana, levam ao retrocesso da floresta nativa e à propagação de zonas de matos rasteiros dominados por espécies pioneiras que beneficiam do distúrbio constante do fogo.
A dominância destas espécies, como as giestas, expõe de novo a paisagem ao risco de fogo, já que não há tempo para que a floresta possa crescer, tornando-se mais complexa e resiliente ao fogo. Para resolver o problema dos “matos”, fases iniciais de sucessão florestal, o pastoreio é fundamental, pastoreio esse que pode ser desempenhado tanto por animais domésticos como selvagens. Contudo, décadas de planos e incentivos ao regresso da pastorícia à serra da Estrela têm tido resultados muito limitados. Continuamos a tentar resolver problemas atuais com soluções do passado, e a insistência nessas soluções deixa de fora outras alternativas que poderiam e deveriam ser consideradas, como a utilização de soluções baseadas na natureza.
Está na hora de considerar outras opções, como a de renaturalizar a serra da Estrela por via do aumento da biomassa animal de herbívoros selvagens, para que possam consumir a matéria fina vegetal, o combustível principal dos fogos, e estruturar o crescimento florestal aumentando a diversidade, e distribuindo as sementes pela paisagem.
A acumulação de material combustível nas zonas de plantações florestais, e nos matos rasteiros em geral, não é fruto do abandono como se quer fazer acreditar, mas devido à economia energética das últimas décadas. O que ardeu nos últimos dez dias é toda a energia que não foi consumida nas lareiras e fogões que existiam antigamente. Ao contrário da crença popular, não são as ovelhas e cabras que comem os matos, eram as populações locais que necessitavam desse material para se aquecer e laborar.
Ora nas últimas décadas a eletricidade, o gás e o gasóleo tornaram obsoletas as molhadas de giestas e urgueiras que eram a principal fonte de energia dos nossos avós. E por isso elas continuaram a crescer, o que seria natural para dar lugar a outras formas mais avançadas de ecossistemas florestais típicos da serra da Estrela. Tentar reverter este paradigma conforme é proposto por alguns é sugerir que as comunidades pastoris voltassem a viver à roda da fogueira, sem acesso a comodidades de habitação e transporte que a sociedade em geral já considera garantidas.
Para evitar que tais acumulações de energia não fiquem disponíveis para o fogo, é necessário enterrá-las, ou seja transformar essa matéria em fertilizante, e nada o faz mais eficazmente do que os herbívoros, especialmente os de grande porte e que na serra já desapareceram há muito tempo. Necessitamos de devolver à serra os cavalos selvagens, auroques, e cabras-montesas para que consigam desempenhar o seu papel no ecossistema e nos ajudem a controlar a matéria fina vegetal para que esta não se acumule, à espera do próximo verão quente.
Temos ainda de considerar outras formas de estruturar a paisagem que não seja sempre pelo apelo a terceiros para o fazerem, como é o caso das florestas e também o das linhas de água. A Estrela é a fonte que dá de beber às três principais bacias hidrográficas do país, nomeadamente o Zêzere para o Tejo, o Mondego, e o Côa até ao Douro. Contudo, a serra sofre de falta de capacidade de reter água para alimentar estas bacias hidrográficas. Sem as florestas, a água não é captada e armazenada e escorre rapidamente para o mar, não servindo as populações que dela necessitam.
A água que corre nos rios e ribeiras pelas encostas da serra é um subproduto da floresta, que capta a humidade do ar e a retém nas suas raízes. Para que a serra atue como esponja e armazene água são necessárias florestas maduras. Se não queremos ver a água a escorrer rapidamente até ao mar, temos de a reter em altura, e não em grandes reservatórios com grandes superfícies de evaporação, como são as barragens. Mais uma vez, a solução proposta é investir ainda mais dinheiro público para construir barragens, mas esta não é a única solução.
Uma solução de base natural passa por ter muitos e pequenos açudes nos cursos de água, zonas de alagamento temporário e permitir que as florestas ribeirinhas se expandam. Todos estes habitats são naturalmente criados por uma espécie chave europeia que se extinguiu em Portugal na Idade Média – o castor. Noutros países da Europa, em que esta espécie já regressou, vemos resultados positivos de retenção de água na paisagem.
Nada disto é novo, os problemas e as suas soluções são conhecidos há décadas, o que nos falta é atuar e pôr em marcha uma verdadeira estratégia com visão para o futuro, entendendo as condições atuais sem que nos percamos em saudosismos inoperantes, para que possamos deixar a serra da Estrela às gerações futuras melhor do que a encontrámos e gerimos nos dias que correm.
As florestas maduras não aparecem do dia para a noite, são o resultado de processos longos e complexos que podem iniciar-se até depois de eventos catastróficos como este. É necessário dar uma oportunidade à natureza para se regenerar, e onde melhor fazê-lo do que num parque tão icónico como o da Estrela? O ser humano tem tentado gerir a serra da Estrela de inúmeras maneiras: animais domésticos, queimadas para limpar o mato, apanha de lenha, sapadores florestais e muitas outras formas. O resultado destas abordagens está à vista. Talvez esta tragédia seja uma oportunidade para tentar algo novo e deixar a natureza gerir-se a si própria.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico