Uma amostra do mosaico de biodiversidade que é a serra da Estrela
A cadeia montanhosa abriga um vasto leque de animais e plantas, incluindo espécies endémicas e espécies que, ocorrendo noutros pontos do globo, são raras no resto do país.
O incêndio que continua a lavrar na serra da Estrela está a pôr em perigo a biodiversidade do território. E é de uma biodiversidade singular de que falamos, pois a cadeia montanhosa, situada na região Centro de Portugal continental, abriga várias espécies endémicas, bem como espécies que, podendo ser encontradas noutros pontos do globo, enfrentam diversos tipos de ameaças.
Olhando para a serra em termos de altitude, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e o Centro de Interpretação da Serra da Estrela (CISE), organismo sediado em Seia, definem três grandes andares: o andar basal (desde o sopé da montanha até aos 800-900 metros de altitude), o intermédio (entre os 800-900 e os 1600-1800 metros) e o superior (acima de 1600-1800 metros).
“Acima dos 1500 metros, a serra da Estrela começa a ser mais sui generis”, conta ao PÚBLICO José Conde. O biólogo do CISE explica que é nas zonas de maior altitude, por causa de factores que podem ir das condições ambientais à ausência de predadores — passando ainda pela reduzida pressão antropogénica —, que podem ser encontradas mais espécies que são raras noutras regiões do país (ou, nos casos de espécies que constituem endemismos nacionais ou ibéricos, do planeta).
Espécies como a lagartixa-da-montanha (Iberolacerta monticola monticola), que só ocorre no andar superior da serra, o longicórnio-da-estrela (Iberodorcadion brannani), que oscila entre os andares intermédio e superior — estando mais presente no intermédio —, e o escaravelho Monotropus lusitanicus, que, à imagem da lagartixa-da-montanha, prefere o andar superior, são exemplos de espécies que, segundo José Conde, são endémicas da serra.
A lista de espécies endémicas da Península Ibérica inclui o carriço-da-estrela (Carex furva), mas, neste momento, esta espécie de planta com flor apenas existe no andar superior da serra da Estrela, estando, segundo a classificação atribuída pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla inglesa), criticamente em perigo.
Além das espécies já mencionadas, o andar superior da serra abriga outros animais que em Portugal são raros, como a cobra-lisa-austríaca (Coronella austriaca), que é mais comum nas regiões Norte e Centro da Europa do que no Sul, o tira-olhos-da-estrela (Aeshna juncea), espécie de libélula que é mais ou menos comum no hemisfério Norte, mas em Portugal está limitada às serras da Estrela e do Gerês, e a escrevedeira-das-neves (Plectrophenax nivalis), que se distribui fundamentalmente pelas regiões árcticas da América, da Europa e da Ásia.
Na flora, destacam-se, ainda no andar superior (e além do já referido carriço-da-estrela), a festuca-da-estrela (Festuca henriquesii), classificada como vulnerável pelo IUCN, e a silene-da-estrela (Silene foetida foetida), que está em perigo de extinção.
Uma biodiversidade tão rica como vulnerável
Uma vez que o andar intermédio é um andar de transição entre o basal e o superior, há poucas espécies que sejam “exclusivas do andar intermédio”, explica José Conde. Ainda assim, o biólogo do CISE dá o exemplo do cruza-bico, um “passeriforme florestal raro” que o IUCN classifica como vulnerável e cuja população apresenta “números baixos em Portugal”.
Há espécies que, estando entre os andares intermédio e superior, ocorrem mais frequentemente no intermédio. São, por exemplo, os casos do grilo-de-sela-da-estrela (Ctenodecticus lusitanicus) e do teixo (Taxus baccata), árvore que em Portugal ocorre de forma espontânea apenas na serra da Estrela, no Parque Nacional Peneda-Gerês e na serra do Caramulo — sendo que aqui existe apenas um exemplar, pelo que, mais cedo ou mais tarde, “haverá uma extinção local”, diz José Conde. O teixo surge como uma espécie em perigo na Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental.
No que diz respeito a espécies que, estando entre os andares intermédio e superior, ocorrem mais frequentemente no superior, dois exemplos incluem a borboleta Sactyrus actaea e o já mencionado longicórnio-da-estrela.
Quanto a espécies entre os andares basal e intermédio, há, por exemplo, a víbora-cornuda (Vipera latastei), que é endémica da Península Ibérica (e do Noroeste de África) e ocorre mais com mais frequência no andar intermédio. Entre os dois andares, podem ainda ser encontrados animais como codornizes, coelhos, corujas-do-mato, gaviões, genetas, lagartixas-ibéricas, texugos e rouxinóis.
O andar basal abriga, por exemplo, a salamandra-lusitânica (Chioglossa lusitanica), anfíbio vulnerável que é endémico do Noroeste da Península Ibérica, o lírio-martagão (Lilium martagon), planta herbácea, perene e bulbosa que também está incluída na Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, e árvores como a azinheira (Quercus ilex) e o azereiro (Prunus lusitanica). Esta última espécie é nativa de Portugal, bem como de Espanha, França e Marrocos.
Por último, referir que há espécies que ocorrem em todas as altitudes da serra. Alguns exemplos incluem o tartaranhão-caçador (Circus pygargus) — ave cujas populações têm estado “em decréscimo um pouco por todo o país desde as últimas duas décadas”, diz José Conde —, a águia-de-asa-redonda (Buteo buteo), a garça-real (Ardea cinerea), o melro-d’água (Cinclus cinclus), a rã-ibérica (Rana iberica) e o sapo-parteiro (Alytes obstreticans), que outrora já foi a espécie de anfíbio mais abundante no andar superior da serra da Estrela. Hoje, a população (nesse andar em específico) é muito mais reduzida. A culpa, explica José Conde, foi de uma epizootia (doença que ataca ao mesmo tempo muitos animais da mesma espécie na mesma zona) observada há cerca de duas décadas. “A população no planalto superior da serra quase que se extinguiu”, lembra o biólogo.