Novas provas indiciam que o arqueólogo que descobriu o túmulo de Tutankhamon também o terá roubado
Há cem anos, Howard Carter liderou uma das expedições mais famosas do mundo, mas suspeitava-se que teria subtraído artefactos antes da abertura oficial do túmulo. Carta de peritos reputados da época diz que túmulo foi “indubitavelmente roubado”.
Talvez o faraó cuja morte gera mais fascínio, Tutankhamon continua a ser notícia no ano em que se cumpre o centenário da descoberta do seu túmulo. Desta feita é um novo livro, do egiptólogo Bob Brier, que revela cartas de um filólogo reputado do início do século XX e que trabalhou com Howard Carter, o arqueólogo que descobriu o túmulo do jovem faraó, nas quais acusa directamente Carter de roubar tesouros de algumas das câmaras antes de terem sido oficialmente abertas.
A notícia é avançada pelo diário britânico The Guardian este domingo, citando o livro ainda por publicar de Brier, Tutankhamun and the Tomb that Changed the World (Oxford University Press), em que vêm pela primeira vez a público cartas de Alan Gardiner que até agora estavam numa colecção privada. Gardiner era filólogo e foi alistado por Carter na sua equipa para traduzir hieróglifos do túmulo de 3300 anos.
Howard Carter ofereceu a Gardiner um amuleto tradicional whm, uma oferta aos mortos na tradição egípcia, e o filólogo levou-a ao então director do Museu Egípcio do Cairo, o britânico Rex Engelbach, que por seu turno lhe garantiu que o objecto vinha do interior do túmulo de Tutankhamon — correspondia ao molde usado noutros encontrados nas câmaras que guardavam o corpo do jovem faraó. Carter tinha garantido a Gardiner que o amuleto não vinha do túmulo.
Gardiner ficou furioso e enviou uma carta a Carter em que também constava a garantia de Engelbach de que o artefacto era mesmo do túmulo e, portanto, teria sido subtraído à margem da missão oficial e científica. “O amuleto whm foi indubitavelmente roubado do túmulo de Tutankhamon”, escreveu ao arqueólogo. “Lamento profundamente ter sido colocado numa posição tão desconfortável”, escreveu ainda, partilhando porém que “naturalmente” não dissera ao director do museu onde tinha arranjado o amuleto.
Bob Brier disse ao Guardian que após décadas de suspeitas e rumores de que Carter teria roubado itens do túmulo de Tutankhamon, “agora não há qualquer dúvida quanto a isso”.
O faraó adolescente
A descoberta do túmulo de Tutankhamon, uma expedição financiada pelo Lord Carnarvon, é até hoje uma das mais fantásticas e celebradas descobertas da arqueologia, como escrevia o PÚBLICO em 2016. Os tesouros que o túmulo encerrava, que iam de carruagens a tronos, passando por jóias, tecidos, armas e a famosa máscara de ouro, com pedras preciosas e vidro colorido, que cobria a múmia do faraó. Além de informação de valor incalculável em termos científicos. Os artefactos foram sendo retirados do túmulo e transportados para o Museu Egípcio durante a década seguinte à sua descoberta.
Ora Howard Carter, confrontado com a falta de alguns artefactos, argumentava que o túmulo tinha sido saqueado no passado no muito mais rico Vale dos Reis. Mas “suspeitava que eles [a equipa de Carter] tinham arrombado o túmulo antes da sua abertura oficial, levado artefactos incluindo jóias, e que foram vendidas após as suas mortes. Sabe-se que Carter tinha alguns desses itens, de alguma maneira, e as pessoas suspeitavam que ele podia ter-se servido deles [nessa circunstância], mas estas cartas são a prova provada” de que tal aconteceu, diz Brier ao Guardian.
Alguns egiptólogos já contestavam essa ideia de que o túmulo já tinha sido pilhado quando foi encontrado por Carter, recorda o Guardian este domingo. Há mesmo uma revista científica pouco conhecida do Cairo em que em 1947 um dos empregados de Carter denunciava que o arqueólogo tinha violado o selo que fechava o túmulo antes de tentar voltar a selá-lo e a cobrir a abertura novamente. Agora, é a voz de um respeitado profissional da altura — aliás dois — que é recuperada para denunciar que terá existido roubo.
A riqueza dos seus interiores, dos sarcófagos às jóias e máscaras, não era comparável à do túmulo de um faraó mais velho e importante — Tutankhamon morreu aos 18 anos, após dez anos de governação, e sem acontecimentos muito importantes que o fizessem notar na História. Mas o estado em que foi encontrado gerou o fascínio pela tradução imediata da beleza da cultura egípcia e, em particular, pelos seus ritos e culto dos mortos. Em 2007, o egiptólogo Luís Manuel de Araújo desmistificava ao PÚBLICO a importância, em termos comparativos, deste túmulo e contextualizava por que motivo tinha sido encontrado em tão boas condições.
“Escapou justamente porque é um túmulo de segunda, e os ladrões tinham mais que fazer”, explicou o professor da Faculdade de Letras de Lisboa na altura. A maior parte dos túmulos dos faraós egípcios “foram saqueados no final do Império Novo, nos finais do século XII a.C. e século XI, uma época de crise, miséria e fome, em que o Egipto estava já decadente”.
Carter nunca admitiu nem negou ter roubado objectos do túmulo, mas Bob Brier chama a atenção para o facto de o governo egípcio na altura o ter banido do túmulo por motivos que não são claros mas que envolveriam, defende a tese do egiptólogo agora divulgada, suspeitas desse roubo. Uma escultura de uma cabeça de madeira que representava o faraó adolescente foi encontrada dentro de um caixote de uma loja britânica numa das câmaras do túmulo, onde Carter armazenava as antiguidades que iam catalogando — “mas nunca tinha sido mencionada nos registos dos achados de Carter nem no volume que descrevia o conteúdo da antecâmara [onde foi repousava o busto]… Carter argumentou simplesmente que tinha sido descoberta nos escombros numa passagem”, explica Brier.
Vários dos artefactos em falta acabariam por entrar no mercado de antiguidades, anos mais tarde, e alguns deles foram mesmo parar a importantes museus como o Metropolitan de Nova Iorque, que anunciou em 2010 que iria devolver 19 objectos do túmulo de Tutankhamon.