O krill como paixão

A bióloga marinha Teresa Silva partiu para a Islândia em 2007, pensando que ia apenas por alguns meses arranjar dinheiro para fazer o mestrado em Portugal. Nunca mais regressou. É cientista do Instituto de Investigação Marinha e de Água Doce do país onde, além de alimentar, sempre que pode, a sua paixão pelo estudo do krill, se vai dedicando a outros projectos.

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A bióloga Teresa Silva em Hafnarfjörður, na Islândia Nuno Ferreira Santos

Os dois homens estão calmamente sentados a uma mesa, com um prato com fatias de bolo e peças de fruta entre eles. Não há recepcionista no Instituto de Investigação Marinha e de Água Doce (Hafrannsóknastofnun, em islandês), em Hafnarfjörður, na Islândia, por isso já atravessámos parte do rés-do-chão quando os encontrámos e perguntámos pela investigadora portuguesa Teresa Silva. Um deles oferece-se para nos acompanhar e passa à frente do elevador sem o chamar, enquanto anuncia: “É no 3.º piso, mas vamos pelas escadas, que faz melhor à saúde e ao ambiente.”

Teresa Silva, bióloga marinha, está lá em cima, no seu gabinete, em frente ao computador onde o ecrã mostra um conjunto de dados acústicos. Mas, um pouco por todo o lado – nos quadros da parede, em desenhos na secretária, alguns pintados pela própria –, está o retrato do que é a sua verdadeira paixão: pequenos crustáceos chamados krill. Não foi por causa deles que a investigadora portuguesa partiu para a Islândia, mas foi por eles que acabou por ficar.

Em Portugal, tirou o curso no Instituto Politécnico de Leiria e quando fez o estágio no Instituto de Investigação das Pescas e do Mar, em Matosinhos, foi já sobre um crustáceo: o camarão da costa. “Gosto de camarão e crustáceos, sempre gostei de trabalhar com eles. São diferentes”, diz, para logo exemplificar, entusiasmada: “O krill, quando não tem comida suficiente, consegue diminuir de tamanho, para poupar energia.”

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Muito do trabalho de Teresa Silva passa pela sua sala no instituto, onde faz a análise de dados recolhidos pelos projectos em que participa

A ida para a Islândia foi quase uma coincidência. Tinha familiares a trabalhar no país, incluindo o pai, o que a incentivou a partir também, durante o que pensava ser apenas uma temporada. “Vim em 2007, no intuito de ficar uns meses, ganhar algum dinheiro e voltar para Portugal, para tirar o mestrado”, recorda.

Arranjou emprego numa fábrica de peixe, mas pouco depois foi convidada para ir trabalhar para o instituto a menos de 20 quilómetros a sul da capital. Chegou ali em 2008, como analista de zooplâncton, passou o mestrado à frente e fez directamente o doutoramento, em ecologia do krill na Islândia. Hoje é uma das investigadoras do centro que ocupa aquele que é o maior edifício em madeira da Islândia, inaugurado em 2019. E o trabalho expandiu-se muito para além do estudo do pequeno crustáceo que, confessa, continua a ser a sua “paixãozinha”.

Na tese de doutoramento, publicada em 2018, Teresa Silva concluiu que o número de pequenos crustáceos, que são a base da cadeia alimentar da Islândia – petisco muito apreciado, por exemplo, por baleias e o bacalhau –, estava a diminuir. “Na Islândia existem cerca de cinco milhões de toneladas de krill, mas os dados do meu doutoramento indicam que ele está em declínio, especialmente no Sul, e que isso acontece desde 1950”, relembra.

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As paredes da sala de trabalho estão decoradas com imagens dos vários estádios do krill, a sua "paixão"

Uma das hipóteses admitidas pela investigadora é que um dos factores para esse declínio são as alterações climáticas. “A minha tese indica que alterações climáticas apontam para um começo tardio do desenvolvimento do fitoplâncton. A hipótese que levanto para o declínio do krill é que, por causa disso, haja uma fraca sincronização com a quantidade de comida disponível para os estádios larvares de krill, que precisam de comer fitoplâncton. Se não conseguirem encontrar comida na superfície da coluna de água, a mortalidade dos estádios larvares é elevada”, explica.

Durante esse trabalho, Teresa Silva recorreu a diferentes dados e também experiências, incluindo uma em que a água foi colocada a diferentes temperaturas em diversos tanques, para tentar perceber como é que o aquecimento global influenciava o crescimento e dimensão do krill. Concluiu que todos eles diminuíram de tamanho, mas que essa redução foi mais evidente nas águas mais quentes.

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Nos tempos livres, Teresa Silva gosta de desenhar e foi ela quem pintou a imagem desta espécie de krill

É possível, por isso, que o esperado aumento médio da temperatura do mar islandês (que pode chegar aos três graus Celsius ainda este século) venha a ter mais repercussões na vida destes pequenos crustáceos. Alguns, Teresa Silva já consegue adivinhar: “Como o capelim e o krill têm um crescimento muito rápido, porque duram poucos anos, as alterações climáticas têm mais efeito sobre eles, já que não têm muito tempo de adaptação. Têm de se movimentar, migrar para águas mais frias.”

A investigadora já começou a ver isso na outra espécie que acaba de citar – o capelim (Mallotus villosus), mais uma das iguarias preferidas do bacalhau – e que, nos últimos anos, se tornou também um dos alvos do trabalho que desenvolve na Islândia.

Alteração nas rotas migratórias

Não é ele que ocupa Teresa Silva a tempo inteiro – isso é outro projecto, mas já lá vamos –​, mas a investigadora participa em várias campanhas de análise de stock, que ocorrem em Janeiro, Fevereiro e Setembro. Sempre que pode, Teresa instala-se a bordo de um dos barcos de investigação do instituto, e segue para as águas frias ainda mais a Norte, durante cerca de três semanas. “Se tivermos sorte, paramos na Gronelândia”, sorri, explicando que há oito barcos envolvidos nesta avaliação, entre os de investigação pura e os de pesca. Durante aquele período, e utilizando sistemas acústicos colocados no mar, procuram detectar a presença dos cardumes e estabelecer o seu número, recolhendo também amostras para análise.

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“O capelim é um dos peixes mais importantes da Islândia”, explica a investigadora. Não só é dos principais alimentos do bacalhau, como as suas ovas são vendidas para o Japão, embora seja mais usado, economicamente, para ser transformado em farinha de peixe – que serve, por exemplo, de alimento a outras espécies criadas em aquacultura. E este potencial económico pode ser uma mais-valia na sua manutenção enquanto prioridade de estudo e preservação. Porque, salienta a investigadora, embora os islandeses estejam muito focados nas questões ambientais, “não dão muito valor aos animais, a não ser ao peixe, àquilo que conseguem vender.”

O trabalho desenvolvido nos últimos anos permitiu perceber uma coisa – as alterações climáticas já estão a interferir com a movimentação de algumas espécies marinhas, incluindo o capelim. “O aumento da temperatura da água do mar, sobretudo no Sul da Islândia, está a provocar uma alteração de espécies que aqui aparecem, até invasoras, e tem modificado, por exemplo, a migração do capelim, que tem sido deslocada para águas mais frias, para a Gronelândia, para alimentação e mesmo a desova. Antes disto vinham mais para cá, para o Sul”, revela.

Já fora do seu gabinete, Teresa Silva mostra-nos o laboratório e alguns espécimes, conservados em formol, de krill (o tema volta sempre para cima da mesa e ela diz que insiste em mantê-lo na agenda, sempre que pode, ainda que, por estes dias, só se possa ocupar dele “nos tempos livres”). No exterior, quando a maior parte dos seus colegas já partiu ou está prestes a partir – já passa das 15h, a hora de saída no instituto –, mostra-nos o barco mais antigo do centro, que está prestes a ganhar a companhia de um novo, a ser construído neste momento.

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O instituto está a construir um novo barco, que irá juntar-se a este, o mais antigo que possui e onde Teresa Silva e os colegas saem para o mar, quando é preciso fazer trabalho de campo

Teresa conhece-o bem, porque é nele que segue quando vai fazer pesquisas para o mar. Embora muito do seu trabalho seja também feito no gabinete de janelas altas onde nos aguardava.

Conhecer as profundezas com a ajuda do som

É aí, pelo ecrã do seu computador, que passam os dados e mais dados que tem de analisar. Como aqueles do projecto que mais tempo lhe toma neste momento: o MEESO, financiado pela União Europeia, que envolve 19 instituições de dez países (incluindo Portugal) e cujo objectivo é claramente explicado na sua página de apresentação: “Podem os organismos que vivem no oceano profundo ser explorados de forma ecológica e economicamente sustentável ou são demasiados vulneráveis?”

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A investigadora foi para a Islândia em 2007, pensando que ia ganhar algum dinheiro e regressar a Portugal, para fazer o mestrado, mas nunca mais voltou

Com a ajuda de equipamentos que medem sinais acústicos, estes recursos, da camada mesopelágica, entre os 200 e os mil metros de profundidade, estão a ser estudados por Teresa Silva e muitos outros investigadores europeus. “Queremos estimar com mais precisão o que está nesta camada. Dados recentes indicam que 50% da biomassa global de peixe reside nesta camada mesopelágica, mas [essa percentagem] precisa de ser estimada mais correctamente”, explica.

O projecto, iniciado em 2019 e com a duração prevista de três anos, já permitiu identificar a presença de 130 espécies diferentes, naquela camada, na costa Sul da Islândia. Mas é preciso mais e no instituto está a ser desenvolvido um novo equipamento, que será munido de câmaras e sensores, e que poderá ajudar a obter dados ainda mais precisos.

Esta capacidade de investimento num equipamento que poucos países do mundo têm é uma das razões que levam Teresa Silva a sorrir e a admitir que voltar para Portugal é uma possibilidade pouco provável. Mas há mais. O laboratório vivo que o país é, com as mudanças ao nível do clima a ocorreram de forma muito marcante; as condições de trabalho oferecidas, com o instituto a fazer questão de cumprir a lei que diz que não pode haver discriminação salarial entre homens e mulheres que fazem o mesmo trabalho; uma muito maior atenção ao equilíbrio entre a vida pessoal e laboral. “É complicado voltar para Portugal. Se pudesse, claro que ia. Mas aqui uma mulher, enquanto cientista, tem mais condições, a nível da ciência e da vida pessoal”, sorri.

E depois há sempre o krill, que começou por estudar ali e a que, podendo, quer voltar. Até porque, se é a parte económica que pode alavancar o estudo de algumas espécies, o seu potencial continua em alta.

“Há empresas que o recolhem para fazer óleo ómega-3. Em 2012/2013 fizemos uma avaliação, para perceber se havia krill suficiente [para ser utilizado para este fim]. Uma empresa fez uma amostragem e concluiu-se que o óleo do krill da Islândia é melhor do que o que existe na Antárctida. Ali pescam-no muito, mas têm de fazer mais tratamento, este é mais puro.” Uma decisão com maior precisão nesta matéria pode precisar de mais estudos. E, se assim for, Teresa Silva estará mais do que disponível para voltar à sua velha paixão.

Este trabalho integra um conjunto de reportagens realizadas com o apoio das EEA Grants.

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