A biodiversidade ameaçada da serra da Estrela em dez espécies
Enquanto os bombeiros continuam a tentar apagar um fogo que lavra desde o último sábado, olhamos para os tesouros da biodiversidade que a serra da Estrela alberga.
Devido às suas particularidades geológicas, a serra da Estrela é um hotspot da biodiversidade, acolhendo um leque vasto de espécies endémicas (isto é, espécies que, tanto quanto se saiba, só vivem na serra) e espécies que, estando presentes noutros pontos do globo, têm, pelo menos a nível nacional, uma distribuição restrita. A propósito do fogo que lavra na região, o PÚBLICO pediu a José Conde, biólogo do Centro de Interpretação da Serra da Estrela (CISE), em Seia, para identificar dez espécies que ilustrem a biodiversidade singular do território. Muitas dessas dez espécies são endémicas, ocupando áreas acima dos 1000 metros de altitude. E é provável que o fogo tenha afectado algumas delas, pois há uma intersecção entre aquele que é o seu habitat e a área ardida.
O Governo já se pronunciou sobre a perda de biodiversidade. “Nós estamos, num parque natural [o Parque Natural da Serra da Estrela, ou PNSE], a perder de forma incomensurável um conjunto de habitats naturais que temos de preservar e reabilitar rapidamente”, afirmou à comunicação social, esta sexta-feira, João Paulo Catarino, secretário de Estado da Conservação da Natureza e das Florestas.
Lagartixa-da-montanha (Iberolacerta monticola monticola)
Está para a serra da Estrela como o panda está para a China: ao nível da fauna, é uma das “espécies-símbolo” do Parque Nacional da Serra da Estrela, diz José Conde.
Exclusivo da serra, o réptil, descrito em 1905, é “uma das espécies mais estudadas” na área do PNSE — o que é relevante, pois “há poucos dados sobre a dinâmica demográfica da maioria” das espécies endémicas da região. Em 1999, estimou-se que existissem 400 mil a 700 mil indivíduos da espécie. Mas não é improvável que, desde então, esses valores tenham caído, diz José Conde, referindo que o animal é “vulnerável a factores como alterações climáticas, fogos e degradação de habitat”.
Isto porque é uma espécie “altamente especializada”. “Está bem adaptada a habitats de altitude (acima dos 1500 metros) e essa especialização constitui um factor de risco para a extinção”, diz o biólogo, afirmando que, caso ocorra um evento que altere significativamente o seu habitat, o animal (como a maioria das espécies endémicas que vivem nas regiões de alta montanha da serra) tem dificuldade em se adaptar e sobreviver.
O réptil ainda não deverá ter sido afectado pelo fogo. “As áreas onde ele ocorre foram atingidas pelo incêndio apenas muito marginalmente”, assinala José Conde.
Longicórnio-da-estrela (Iberodorcadion brannani)
Endémico da serra, este escaravelho preto com antenas longas ocorre “essencialmente acima dos 1100-1200 metros de altitude”. Espécie cujas larvas se desenvolvem nas raízes das ervas, o insecto depende de “prados com níveis elevados de humidade”. Observa-se tendencialmente na Primavera, sendo “menos frequente no final do Verão”.
“Neste período do ano”, diz José Conde, “a espécie está nos prados, na fase larval do seu ciclo de vida”. É possível que o fogo esteja a ser destrutivo para o insecto. “Com a acção de um fogo, as zonas de prados podem ficar tão degradadas que prados húmidos podem passam a ser secos — o solo, perdendo a sua estrutura, perde a capacidade de armazenar água”, explica o biólogo.
José Conde diz que a espécie será, “quase seguramente”, incluída na Lista Vermelha de Invertebrados (LVI), projecto que tem como objectivo avaliar o risco de extinção de cerca de 700 espécies de diferentes tipos de invertebrados. A lista deveria ter ficado pronta em Maio de 2021, mas o projecto, coordenado pelo Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c), sofreu um atraso.
Grilo-de-sela-da-estrela (Ctenodecticus lusitanicus)
Este insecto é mais abundante do que o longicórnio-da-estrela. “Observa-se a partir dos 1000-1100 metros em zonas de prados”, diz José Conde, frisando que o fogo já ultrapassou a altitude mencionada.
Quer isto dizer que, “seguramente”, muitos grilos-de-sela-da-estrela terão morrido. Mas, a médio prazo, a espécie até deverá sair beneficiada do fogo, que “vai provocar uma alteração da paisagem”. “Numa fase inicial, as áreas florestais vão diminuir. E, enquanto a vegetação não se desenvolver, a área de prados será maior, o que será positivo para a espécie”, diz o biólogo, que acrescenta: “É claro que, não havendo pressão por parte de rebanhos ou herbívoros selvagens, estes prados tendem a evoluir para florestas, pelo que depois haverá uma regressão.”
Monotropus lusitanicus
Este insecto, endémico da serra, também terá sido muito afectado pelo fogo. É um escaravelho com uma população pequena e que privilegia prados acima dos 1400 metros. José Conde diz que um dos locais onde existem mais registos de indivíduos desta espécie é a área da Lagoa Seca, que foi atingida pelo fogo.
A Monotropus lusitanicus foi descrita nos anos 1970. “Muitas das espécies de insectos da serra foram descobertas recentemente”, diz o biólogo do CISE, referindo que “ainda há um desconhecimento muito grande” e que a “lista de espécies endémicas está sempre em actualização”. O especialista diz que também é de se prever que este insecto venha a ser incluído na LVI.
Festuca-da-estrela (Festuca henriquesii)
Endémica, esta espécie de planta com flor, descrita em finais do século XIX, ocorre em locais que são zonas de pastagem para rebanhos. Pode aparecer em altitudes acima dos 1400 metros, mas é mais comum em altitudes acima dos 1600 metros. Em termos de distribuição, a espécie, classificada como vulnerável pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla inglesa), está “circunscrita a uma área muito reduzida”, diz José Conde, afirmando que, embora a festuca-da-estrela possa ocorrer acima dos 1400 metros, “o mais provável é que a sua área de distribuição esteja fora da área abrangida pelo fogo”.
Silene-da-estrela (Silene foetida foetida)
Esta subespécie de planta com flor é, fundamentalmente devido à sua beleza, “outro dos símbolos da serra”, diz o biólogo do CISE. Gosta de habitats rochosos, como cascalheiras, que constituem “um habitat típico da serra da Estrela”. Segundo a classificação da IUCN, a Silene foetida foetida está em perigo de extinção.
Carriço-da-estrela (Carex furva)
Endémica da Península Ibérica, esta espécie de planta com flor, adaptada a altitudes acima dos 1900 metros, está “criticamente em perigo na serra da Estrela”, segundo José Conde. Uma vez que o carriço-da-estrela está presente apenas na zona mais alta da cadeia montanhosa — que, devido à sua configuração rochosa, é mais resiliente aos incêndios —, este fogo não tem sido problemático para a espécie. Mas ela é bastante vulnerável às alterações climáticas. E o núcleo de indivíduos que existe na serra da Estrela “está muito próximo da estrada”, o que faz com que seja vulnerável à ocorrência de obras na estrada, entre outras perturbações possíveis.
Teixo (Taxus baccata)
Em Portugal, esta árvore ocorre de forma espontânea apenas na serra da Estrela, no Parque Nacional Peneda-Gerês e na serra do Caramulo — sendo que aqui existe apenas um exemplar, pelo que, mais cedo ou mais tarde, “haverá uma extinção local”, diz José Conde. Na Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, o teixo surge como uma espécie em perigo. Há apenas “poucas centenas” de indivíduos na serra da Estrela, onde a espécie “tem sido muito atingida por incêndios”, afirma o especialista do CISE, falando de um fogo de 2005 que terá sido particularmente destrutivo para a população de teixos no vale do Zêzere.
No caso do fogo actual, “há pelo menos um teixo que ardeu”, confirma o biólogo. “Uma pessoa pode pensar que um teixo é pouco, mas, uma vez que a população é muito pequena, este número representa uma fracção importante da população que existe na serra.”
Víbora-cornuda (Vipera latastei)
Apesar de este réptil ter uma distribuição “bastante alargada” em Portugal, ele está presente “sempre em densidades muito reduzidas”, diz José Conde, referindo que as regiões onde ocorre com maior frequência são o PNSE, o Parque Nacional Peneda-Gerês, o Parque Natural de Montesinho e o Parque Natural do Alvão.
O animal procura zonas montanhosas, onde há “melhores condições de sobrevivência”, pois há menos perturbações humanas e “perseguição directa” por parte de predadores. O número de indivíduos na serra da Estrela é desconhecido. A víbora-cornuda ocorre com alguma frequência em Manteigas, vila que tem sido muito atacada pelo fogo. “É muito provável que a população de víboras possa ter sofrido um impacto negativo na sequência do fogo”, diz José Conde.
Hydraena zezerensis
Este escaravelho aquático tem o nome científico que tem porque foi descoberto, em 1995, “na parte superior do [rio] Zêzere, no vale glaciar de Manteigas”. É um “insecto muito pouco conhecido, característico de cursos de água corrente”. Necessita de “águas cristalinas e muito oxigenadas”, pelo que este fogo poderá vir a ser muito prejudicial. “A água não arde, mas o fogo afecta os ecossistemas aquáticos na mesma. Vai ocorrer um arrastamento de cinzas e sedimentos para a água, que ficará contaminada, reduzindo a sua qualidade — e, consequentemente, reduzindo o habitat para esta espécie”, diz José Conde.
O biólogo do CISE explica que a Hydraena zezerensis é uma espécie “indicadora do estado de conservação do ambiente”. “Tendo em conta que se encontra dependente de águas de qualidade, a sua presença sinaliza que aquele ecossistema é, em princípio, um ecossistema saudável. Por outro lado, o decréscimo das populações alerta para problemas ambientais.”
Sabe-se “pouquíssimo” sobre o estado de conservação deste escaravelho aquático, que será “provavelmente endémico”. “Mas não temos a certeza. Nem isso sabemos”, diz o biólogo, que diz só ter visto este animal uma vez. “E à lupa.”